Não. Não estou exagerando. Tem gente que merece (e como!) ser chamado de “lixo humano”. Os terroristas, os torturadores, os traficantes, os pedófilos, só pra começar a minha listinha de crápulas degenerados. Por favor, caros, não cometam a desfaçatez de aplicar essa mísera alcunha naqueles que não merecem, pessoas de bem que, eventual e involuntariamente, cometem deslizes na vida.
Durante o feriado do carnaval, morreu um sujeito aqui na minha cidade. Era um homem bem conhecido. Estivemos juntos raríssimas vezes. Não posso afirmar, portanto, que fossemos amigos. Considerava-o gentil, educado, prestativo. Velórios em feriados prolongados são terríveis, mais deprimentes do que o normal. Portanto, não compareci ao cemitério. Preferi escrever este texto, que é uma espécie de tributo ao falecido. Espero que ele o mereça, pois foi escrito com muita honestidade e pesar.
Certa feita, convidou-me para participar do seu programa televisivo, cujo propósito era entrevistar personalidades do cenário artístico-cultural local. No íntimo, eu cria ter faltado alguém, de última hora, pois, dado ao grau de irrelevância, eu, se fosse ele, não me convidaria. Foi muito cortês, encheu a minha bola. Disse que eu escrevia demais. Fiz piada com aquilo. Concordei que eu escrevia muito mesmo, aliás, se me deixassem, se mamãe assim o permitisse, eu escrevia um dia inteiro, enchendo laudas e mais laudas de papel reciclado com bobagens que, provavelmente, quase ninguém leria. Não parece, mas, os escritores sofrem. Seus elogios não me insuflaram o ego. Já cansei de bancar o besta. Sou vacinado contra os excessos da vaidade.
Médicos atestaram que ele morrera de câncer no cérebro, um dos piores de todos. Receio que tenha sucumbido por desgosto e tristeza. Eu explico. Há cerca de cinco anos, ele foi acusado de “fazer tretas”, de lesar o erário, quando era gestor municipal, alguma coisa a ver com a compra de insumos para os miseráveis postos de saúde da capital, sem, no entanto, realizar a devida concorrência pública. Alguém cismou que ele tivesse metido a mão numa grana ilícita. Posso estar enganado, talvez esteja, sei lá, mas, algo naquele sujeito me dizia que ele não roubaria nem mesmo uma arruela. Conheço um picareta de longe, só pelo rebolado, só pelo fedor de enxofre que exala do seu hálito, só pela cor embaçada dos olhos, só pela mania de ser pegajoso, de roçar as patinhas no corpo da gente. Os desonestos não conseguem te encarar por muito tempo, não suportam a pressão de se enxergarem ridículos no espelho dos olhos de seus interlocutores.
Além de médico e musicista, o dito-cujo era um agitador cultural. Desde que “estourara o escândalo”, volta e meia tinha o seu nome jogado na berlinda pelos meios de comunicação, especialmente, os jornais da cidade. Foi inúmeras vezes acusado, julgado, condenado e enxovalhado nas redes sociais. Nos últimos meses, teve os seus bens patrimoniais (suponho que sejam irrisórios) bloqueados pela justiça. Como ficará a situação, agora que ele bateu as botas, eu não saberia dizer.
Meu pai sempre me recomendou que a gente não deveria colocar uma só cutícula no fogo, por quem quer se fosse. Fazia exceção aos próprios filhos. Vai entender uma coisas dessas. De qualquer forma, valeu pela confiança, pai. Não aplico na minha vida todos os ensinamentos recebidos do velho, pois, muitos deles são conservadores e fora de questão. Na prática, prefiro a passividade dos ingênuos: tenho o hábito de confiar nas pessoas, até prova em contrário. Não sou de conferir planilhas, relatórios, extratos, inventários e coisas afins. Eu sei do risco que corro, mas, eu costumo crer nas pessoas que cruzam o meu caminho. Se forem desleais comigo, basta uma vez: condeno-as ao silêncio, ao desprezo e ao esquecimento. Parece pouco. Para mim é o suficiente.
Eu suponho que esse indivíduo tenha sido enterrado com aquele gostinho de fel na boca. O amargo. A amargura. Não teve tempo suficiente de provar a sua autodeclarada inocência, de resgatar o nome do lamaçal em que foi atirado, antes mesmo de concluídos os inquéritos e os trâmites da justiça vigente. Vivemos tempos incríveis, velozes, nos quais muitos se intitulam defensores da ética, baluartes dos bons costumes, apesar da evidente boçalidade neles incutida. A tecnologia da comunicação avança a galope, propiciando que cavalgaduras se vangloriem e saiam por aí escoiceando a esmo, sem mensurar as consequências. Há uma epidemia de néscios grassando na internet. Quando muito, esse tipo de “gente conectada” compartilha piadas grosseiras, orações hipócritas e correntes-do-bem estrambólicas, com as quais, juro, muito me agradaria que eles se enforcassem.
São inadmissíveis os julgamentos prévios, as execrações públicas, as falácias, as infâmias, a ingratidão, o compartilhamento de mentiras, a injustiça, enfim. Outro ensinamento que o meu caro e envelhecido genitor me transmitiu foi cuidar de um bem pessoal precioso chamado “honradez”. Prefiro dizer “dignidade”, pai. Esse tem sido um atributo cada vez mais usurpado por muitos que manifestam as suas opiniões nas redes sociais e nas mídias digitais, tratando como lixo pessoas que, claramente, não merecem. É triste constatar o quanto estamos nos tornando seres humanos rasos e insuportáveis.