Com a morte de Ferreira Gullar, morre a poesia brasileira do século 20
Quando um grande artista se vai, ele não desaparece. Eternizado em sua obra, permanece para nós, leitores, pobres vivos que passarão, talvez com a sorte de beleza com que passam os passarinhos. Ferreira Gullar, um artista de verdade, um glutão do saber e da cultura, da palavra e do fazer expressivo, que se aventurou na pintura, na música, no teatro, na teledramaturgia, nos movimentos de cultura popular, faleceu hoje, no quarto dia de um mês de Dezembro de 2016, ano custoso de terminar.
Li a sua obra do começo ao fim algumas vezes. Estudando-o, acompanhei seu pensamento, e quando pude conhecê-lo, encontrei um Gullar bem diferente daquele por mim conhecido em sua poesia de esquerda, engajada, politicamente comprometida com justiça social e uma agenda harmônica com o que havia de mais puro em se tratando de ideologia esquerdista.
Sua poesia mudou. Sua vida mudou. Mas era assim que tinha que ser, pois a desarmonia sempre foi o seu alvo: “Eu não tenho projeto, eu nunca tive projeto”, dizia ele. Agia por impulso permanente de mudar. Revolucionário de si mesmo, sem pudores, mudava de opinião, e talvez corroborasse com Paulo Francis, mesmo em um período de sua trajetória na qual os dois pudessem estar diametralmente opostos, seguindo a máxima do jornalista (também outrora de esquerda): “Toda pessoa inteligente é contraditória. Só gente burra que nunca se contradiz”.
Gullar mudou, mas sem jamais deixar de ser Gullar, poeta que dava peso e medida a cada palavra desmedida de sua poesia, comprometida com a informação de um sentimento ou estado de espírito, mesmo quando parecia não estar.
Com Ferreira Gullar e Manoel de Barros mortos, o século 20 talvez termine, literariamente, para o Brasil, ao menos no que diz respeito à poesia. Na prosa ainda respira Lygia. O que nos resta deste século 20, vivos, na prosa, são “pilares” frágeis demais para serem mantidos de pé com a mesma envergadura de Barros e Gullar: ficarão, no máximo, como colunas velhas de uma época pela qual passaram Bandeira e Drummond, Cabral e Mário de Andrade, os irmãos Campos.
Seu trabalho como crítico de arte o coloca na sala de honra da intelectualidade brasileira. Gullar foi um guia e uma inspiração para jovens que não queriam apenas saber literatura, mas eram ciosos de saber mais e mais, não por vaidade, ou não apenas por ela, mas porque a paixão pelo belo, a inquietação permanente construída pelo incômodo que o não saber traz aos inquietos, movimentavam esse homem.
Essa carência por mais e mais o tirou do Maranhão. Trouxe-o para o Rio de Janeiro. Queria uma cidade na qual pudesse conversar com pessoas sobre ideias, ver quadros, ver obras, estar no caos permanente. Meditar sobre o açúcar em uma mesa de café da manhã, em Ipanema, voltando assim aos canaviais dos quais saía aquele açúcar. Forma sublime de retornar à região natal, com a força do pensamento e a expressividade estética. Por via do açúcar parado na mesa de Ipanema, fincava, através da poesia, seus pés nas suas origens, talvez de maneira mais forte do que teria feito, caso lá tivesse ficado. Afastar-se para ver melhor, e sem jamais deixar de ser quem era.
Gullar, na sua fragilidade física — era mais baixo e magro do que parecia aos que o conheceram somente pela televisão — era glutão como poucos se o assunto era o conhecimento. Sua biblioteca, que transformava sua casa, e especialmente sua sala, em um ambiente belamente claustrofóbico, misturava-se aos quadros e esculturas. Presentes que ganhou de tantos artistas sobre os quais escreveu e a respeito dos quais se calou, mas amou profundamente. Lá havia também sua gatinha, presente da cantora Adriana Calcanhoto, mais um mimo de artista, e mais uma coisa viva que lhe rendeu um poema, no qual se refere à cor dos olhos da gatinha: “olhos azuis safira”, muito mais dignos de interesse do seu sujeito lírico do que os mistérios do mundo, ante os quais se rendia, deles nem querendo saber: a vida presente, os homens presentes, o tempo presente.
A morte sempre o abalou. A ideia de perder um ente querido aterrorizava aquele que passou pela maior das dores: enterrar um filho. Dessa dor tirou um poema, absolutamente poderoso, recorrendo sempre às palavras mais simples, porém manejadas com um primor e sabedoria fatais.
Na última vez que estive com ele, falamos de tudo um pouco, mas muito de Proust. Não consigo me esquecer de sua voz rouca e aborrecida, lendo o poema que fez para a Clarice Lispector quando de sua morte. E me estranha as surpresas da vida e os volteios dela em torno da linguagem. Ontem eu me saudava de Clarice que, pobre de mim e de minha perdida geração (para citar Borges falando de James Joyce, que ele também não conheceu), não conheci e nem pude conhecer pessoalmente, e me veio à lembrança a narrativa dele, falando-me dela, da morte dela, com extrema, profunda, resignada e ao mesmo tempo revoltosa saudade.
As mudanças pelas quais passou o seu pensamento político mudaram a visão de muitos que o adoravam, colocando nele o símbolo de esquerda. Talvez ele tenha mesmo sido. Perdeu um emprego, na juventude, em uma rádio, por ter se recusado a ler uma notícia que acusava jovens comunistas. Pode ter mudado de lado, mas o maior e o principal dos lados ele jamais abandonou: o da coerência, coragem, independência, fortaleza para ser quem era, sustentar as posições que tinha, fossem quais fossem, diferentes, antagônicas ou apenas relativamente diferentes das de outrora.
No fundo, sempre desejou justiça social. Só mudou a forma de acreditar no modo pelo qual esta justiça se faria presente. Reconheceu, com a gentileza que a idade faz para alguns, que não há verdades absolutas. Tudo o que temos são crenças. Há, em nós, essências, e creio: a essência de sua alma solidária e brava jamais se alterou. Pouco importa se à direita, à esquerda, ou no acomodado e reservado centro. Seu coração estava à frente, não de um lado e nem de outro. E era assim que ele se interessava pelo ser humano: sendo humano, ao seu modo.
“Poema Sujo”, sua obra-prima, talvez um dos maiores poemas do século 20, em todas as línguas e literaturas ocidentais, figurando, sem qualquer timidez, ao lado de T. S. Eliot e do conjunto drummondiano, garantiu-lhe lugar permanente nos livros didáticos, nas mesas de discussões e em qualquer lista honesta e responsável elaborada por um pretenso especialista ou reunião de pretensos especialistas.
Quando fez “Poema Sujo”, estava exilado e sem rumo. É um poema que, como ele, tem a ambição glutona de engolir a significação do existir e da existência em um momento de tensão limite. Obra corajosa, monolítica, real, sem pudor na escolha vocabular e altamente audaciosa na sua execução que, como no conjunto de sua obra e trajetória, não tinha projeto dado de início: fez-se como ele era, movido insanamente “dentro da noite veloz”, e está nessa imprecisão sua precisão sólida de poesia verdadeira, sanguínea, que não nos coloca em dúvida por um segundo sequer se estamos diante de uma expressão poética com peso de carne perfurada por uma bala. E o poema nos atinge, em sua clareza acidental. Limpo, sem qualquer palavra que possa ser suprimida ou acrescida, suja-nos com a vida que não está fotografada ali, mas radiografada pelo olhar do poeta, que rompe o tecido do conceitual, e mais que retratar a realidade, cria-a.
Muitos senões vão aparecer agora. Muitos lamentarão a morte do Gullar dos anos 60/70/80, e talvez farão piadas pobres e vazias a respeito do Gullar dos últimos dias, colunista, ai dele, da “Folha de São Paulo”, baluarte da esquerda para os direitistas radicais, e baluarte da direita para os esquerdistas radicais. Para Gullar, apenas um emprego, um veículo no qual escrevia com a liberdade garantida por um lastro que somente a história de uma vida dedicada para o propósito da arte, da compreensão do mundo e da contribuição para a melhora deste mundo pode dar.
Esses, que julgam mais homens que obras, passarão. Sua obra ficará. “Poema Sujo” continuará a ser matéria que leciono em minhas aulas, e tema dos livros que tratam a produção do homem na história da humanidade, em especial na história do século 20.
Para quem ama a linguagem, fica de Gullar tudo, mas um tudo que transcende a política, especialmente esta política de hoje, pobre e podre. Mas, ora, um tudo que requer ressalvas não pode ser chamado de tudo. É que na arte, o tudo é só o que dura. E a vida passa, mas a arte fica. Gullar não foi. Não estava. Não era.
Ferreira Gullar, um dos maiores poetas do século 20, na poesia brasileira e ocidental, é. É e fica sendo. No sempre. Agora.