Talvez não haja no mundo um objeto que tenha recebido mais apologias e homenagens do que o livro. O livro é o amigo de todas as horas, o que lhe responde a todas as perguntas, acumula informações, transfere conhecimentos de uma para outra geração. É o objeto capaz de mudar o homem e o homem muda o mundo. E assim por diante. Mas cada bom livro tem um trecho iluminado, aquele que nos pega e nos pega de jeito e faz a pele arrepiar, pela sua estética, pela verdade, pelo inusitado. Dei uma passada rápida em minha biblioteca e separei 20 belos trechos de 15 livros que deixei marcados por ocasião da leitura.
Tradução: José Rubens Siqueira
Eu nem conseguia entender sempre porque uma parte de meu corpo, com seus anseios irracionais e falsas promessas, devia ser preferido a qualquer outro como um canal de desejo. Às vezes, meu sexo me parecia outro ser inteiramente distinto, um animal estúpido que vivia como um parasita em cima de mim, inchando e murchando de acordo com apetites autônomos, ancorado em minha carne com garras que eu não conseguia soltar. Porque tenho que levar você de mulher para mulher, eu perguntava: simplesmente porque você nasceu sem pernas? Faria alguma diferença se você estivesse enraizado num gato ou num cachorro em vez de estar enraizado em mim?
Tradução: Eric Nepomuceno
Só nos resta a esperança de que o bezerro ainda esteja vivo. Oxalá não tenha tido a ideia de atravessar o rio atrás da mãe. Porque se foi, vai estar faltando um tantinho assim para minha irmã Tacha virar puta. E minha mãe não quer isso.
Tradução: José Rubens Siqueira
Passam-se alguns momentos antes que consiga reconstruir a sequência de eventos e, quando o faz, levanta-se da calçada entendendo que podia ter morrido. A pedra era para matá-lo. Saiu de seu apartamento essa noite por nenhuma outra razão senão topar com aquela pedra e, se conseguiu escapar com vida, isso só pode significar que uma nova vida lhe foi dada — que sua velha vida está terminada, que cada momento de seu passado agora pertence a outra pessoa.
(João Guimarães Rosa)
Daí, depois, tudo começou de novo, em mais bravo. E nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe — mas só quase por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas no mundo. O grande sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?
(…) Entreguei a ele a folha de papel, e fui saindo de lá, por ter mão em mim de não destruir a tiros aquele sujeito. Carnes que muito pesavam… E ele umbigava um princípio de barriga barriguda, que me criou desejos… Com minha brandura, alegre que eu matava. Mas, as barbaridades que esse delegado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em coração para poder me escutar. Conseguiu de muito homem e mulher chorar sangue, por este simples universozinho nosso aqui. Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal…
(…) Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não João Guimarães Rosa — Grande Sertão: Veredas foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.
(Raduan Nassar)
A vida só se organiza se desmentindo, o que é bom para uns é muitas vezes a morte para outros, sendo que só os tolos, entre os que foram atirados com displicência ao fundo, tomam de empréstimo aos que estão por cima a régua que estes usam pra medir o mundo; como vítimas da ordem, insisto em que não temos outra escolha, se quisermos escapar ao fogo deste conflito.
Tradução: Ivan Lessa
Era um homem modesto, mas orgulhoso; tinha esse direito. Construiu uma bela família, fez de sua vida alguma coisa. “Mas essa vida que o que dele fizera — como é que lhe acontecia isso?” — ponderava Erhart enquanto via a fogueira arder. Como era possível tanto esforço, tanta virtude se reduzir da noite para o dia a isso: fumaça adelgaçando-se à medida que subia e era recebida pelo céu enorme e aniquilador?
Tradução: Cássio de Arantes Leite
A seleção de um homem em detrimento de outro é uma preferência absoluta e irrevogável. E é um estúpido genuíno aquele capaz de supor decisão assim tão profunda sem um agente ou significação, uma coisa ou outra. Em tais disputas em que está em jogo é a aniquilação do derrotado, as decisões são cristalinas. Esse homem, segurando esse arranjo particular de cartas em sua mão, é por isso removido da existência. Essa é a natureza da guerra cuja aposta é, ao mesmo tempo, o jogo, a autoridade e a significação. Vista dessa forma, a guerra é a forma mais legítima de divinação. Significa pôr à prova a vontade de um indivíduo e a vontade de outro no contexto dessa vontade mais ampla, que, ao ligar a deles é, por conseguinte, forçada a selecionar. A guerra é o jogo supremo, por que é, em última instância, um forçar da unidade da existência. A guerra é Deus.
Tradução: Kistina Michahelles
Porque só conhece a vida quem já mergulhou nas profundezas. Só um revés confere ao homem sua força impetuosa integral. Principalmente o gênio criador precisa desta solidão temporária forçada para medir, das profundezas do desespero, do exílio distante, o horizonte e a extensão de sua verdadeira missão.
(…) Também na esfera inferior, terrestre, do mundo político, uma retirada temporária confere ao estadista uma nova percepção, uma reflexão mais aguda e uma forma melhor de calcular o jogo das forças em ação. Por isso, nada de melhor pode acontecer a uma carreira do que a sua interrupção temporária, pois quem sempre vê o mundo do alto de uma nuvem, do alto da torre de marfim e do poder, só conhece o sorriso dos submissos e a sua perigosa solicitude: quem tem sempre nas mãos o poder esquece o seu verdadeiro valor.
(…) Nada enfraquece mais o artista, o general, o estadista do que o sucesso permanente de acordo com a vontade e o desejo. Só no fracasso o artista conhece a sua verdadeira relação com a obra, só na derrota o general reconhece seus erros e só na desgraça o estadista adquire verdadeira clarividência política.
(…) Uma riqueza constante torna o homem frouxo, aplausos constantes entorpecem, só a interrupção confere nova tensão e elasticidade criadora ao ritmo que se desenrola no vácuo. Só a desgraça abre uma perspectiva profunda e larga da realidade do mundo.
(…) O exílio, por exemplo, é uma dura lição, mas todo exílio significa ensinar e aprender: ele forma a vontade do fraco, torna decidido o indeciso e torna mais rígido ainda quem já é severo. Para o homem verdadeiramente forte, o exílio não reduz, antes aumenta sua força.
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
O senhor não bebe, não fuma, não come, não corre atrás de saias, dinheiro nem poder. O senhor é assim? Ou essa conduta é uma estratégia, com um intuito secreto? O barbeado semblante do doutor Balaguer voltou a corar. Sua tênue vozinha não hesitou ao afirmar: — Desde que conheci Vossa Excelência, naquela manhã de abril de 1930, meu único vício tem sido servi-lo. Daquele momento em diante soube que, servindo a Trujillo, servia ao meu país. Isso enriqueceu a minha vida, mais do que poderia tê-lo feito uma mulher, o dinheiro ou o poder. Nunca terei palavras para agradecer a Vossa Excelência por me permitir trabalhar ao seu lado.
(José Saramago)
D. Maria Ana estende ao rei a mãozinha suada e fria, que mesmo tendo aquecido debaixo do cobertor logo arrefece ao ar gélido do quarto, e el-rei, que já cumpriu o seu dever, e tudo espera do convencimento e criativo esforço com que o cumpriu, beija-lha como a rainha e futura mãe, se não presumiu demasiado frei António de S. José. É D. Maria Ana quem puxa o cordão da sineta, entram de um lado os camaristas do rei, do outro as damas, pairam cheiros diversos na atmosfera pesada, um deles que facilmente identificam, que sem o que a isto cheira não são possíveis milagres como o que desta vez se espera, porque a outra, e tão falada, incorpórea fecundação, foi uma vez sem exemplo, só para que se ficasse a saber que Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.
Tradução: Modesto Carone
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. — O que aconteceu comigo? — pensou.
Tradução: Bernardina da Silveira Pinheiro
Uma terra estéril, nua deserta, lago vulcânico, o mar morto: nenhum peixe, nenhuma alga, afundado profundamente na terra. Nenhum vento podia elevar aquelas ondas, metal cinzento, águas nebulosas venenosas. Chamavam de enxofre a cair como chuva: as cidades da planície: Sodoma, Gomorra, Edom. Todos nomes mortos. Um mar morto numa terra morta, cinza e velha. Velha agora. Ela produziu a primeira raça, a mais antiga. Uma velha megera encurvada vindo de Cassidy atravessou, agarrando pelo pescoço uma garrafa com um pouco de licor. O povo mais antigo. Vagou bem longe por toda a terra, de cativeiro em cativeiro, se multiplicando, morrendo, nascendo em toda parte. Jazia ali agora. Agora não podia mais gerar. Morta: de uma mulher velha: a boceta cinzenta afundada do mundo.
Tradução: Amilton Reis
Uma morte gloriosa era muito melhor do que uma existência sem sentido. Com a guerra, até mesmo uma unidade como a nossa deixou de lado sua indisciplina crônica. Exercícios físicos, treinos, vigilância, lavoura: tudo era feito com diligência e esforços redobrados. Mas a guerra acabou logo e tudo voltou a ser como antes.
(…) E por acaso dá para imaginar que alguém vai acertar uma bolinha de pingue-pongue na goela do oponente? Pois é, isso também não dá para imaginar. Daí se vê que a vida é cheia de mudanças, o acaso é que ata as pontas do destino. Tudo se encaixa de maneira estranha, bizarra mesmo, ninguém é capaz de prever essas coisas.
Tradução: Carlos Nejar
Lembrou-se bruscamente de que num café da Rua Brasil (a poucos metros da casa de Yrigoyen) havia um enorme gato que se deixava acarinhar pelas pessoas, como uma divindade desdenhosa. Entrou. Aí estava o gato, adormecido. Pediu uma taça de café, adoçou-a lentamente, provou-a (esse prazer lhe tinha sido proibido na clínica) e pensou, enquanto alisava o pelo preto, que aquele contato era ilusório e que estavam como separados por um cristal, porque o homem vive no tempo, na sucessão, e o mágico animal, na atualidade, na eternidade do instante.
Tradução: Eliane Zagury
A atmosfera estava tão úmida que os peixes poderiam entrar pelas portas e sair pelas janelas, navegando no ar dos aposentos. Certa manhã Úrsula acordou sentindo que se acabava num desmaio de placidez, e já tinha pedido que a levassem ao Padre Antonio Isabel, ainda que fosse numa liteira, quando Santa Sofía de la Piedad descobriu que ela tinha as costas empedradas de sanguessugas. Desprenderam-nas uma por uma, queimando-as com tições, antes que acabassem de sangrá-la. Foi preciso abrir canais para escorrer a água da casa e desimpedi-la de sapos e caracóis, para que pudesse secar o chão, tirar os tijolos dos pés das camas e andar outra vez de sapatos.