Ano passado a Pinacoteca de Paris expos trabalhos de Modigliani, Suzanne Valadon, Maurice Utrillo, André Derain, Maurice de Vlaminck, Isaac Antcher, Pinchus Krémègne, Eugène Ebiche, Henri Hayden e Chaïm Soutine. Na mesma época, no Pompidou, Matisse e uma retrospectiva de Gerhard Richter. Com exceção deste último, que é filho do século 20, os demais são da virada de 19 pra 20, talvez a época mais interessante das artes plásticas.
Outro ponto em comum entre eles é, no caso da exposição da Pinacoteca, pertencerem à coleção de Jonas Netter, um descobridor de talentos. O que nos faz perguntar: o gosto de Netter é que é apurado, ou ele viveu numa época feliz? (Olha a síndrome Woody-alleniana de “Meia noite em Paris!”). Imagino aqueles quadros todos na casa do cidadão. Expostos conjuntamente na Pinacoteca, o melhor museu de arte de Paris (por um motivo trivial e mesquinho: tem bem menos turistas), os quadros antes pertencentes a Netter permitiam uma comparação inevitável e instigante. A elegância dos rostos alongados de Modigliani lado-a-lado com as mal traçadas linhas de Soutine, isso surte um efeito estranho no apreciador.
Ao final, concluímos que Valadon e Derain nos aprazem porque nos lembram Matisse. Ebiche porque lembra Van Gogh, Krémègne, Cézanne, e Utrillo, Pissarro. Mas e Soutine? Não me lembrou ninguém, e me deixou bastante incomodado. No bom sentido. Arte que se preze incomoda, mais do que dá prazer (já expus aqui na Bula meus tratados sobre arte, de forma que não me repetirei). Suas paisagens são deformadas, seus retratos, sofridos. E, influência de Modigliani ou não, alongados. Então acontecia o que sempre me acontece quando me deparo com ARTE. Um ímã. Volto e volto e olho por horas. Fico pensando o que se passa com minhas sinapses nessas horas (está aí o que nos diferencia dos animais — uma estúpida mania de pensar sobre pensar sobre pensar sobre pensar). A propósito, numa das “voltas” à Pinacoteca, no trajeto entre a estação Madeleine e lá, chovia. Uma mendiga (como os há hoje em Paris!) estava parada à porta de uma loja de doces, na chuva. Passei, parei poucos metros adiante, voltei. Dei-lhe meu guarda-chuva. Saí com a consciência católico-burguesa satisfeita. No dia seguinte, passando pelo mesmo trajeto, lá estava ela, na chuva, sem guarda-chuva. Claro, dá muito mais dó. Saí dali com uma baita consciência de otário e com mais certeza ainda da absoluta e irremediável não-prestança do ser humano.
Traduzo aqui o pequeno texto que saiu na “Connaissance des arts” da época sobre Soutine:
“Perseguido por causa de sua origem judaica durante a Segunda Guerra Mundial, Chaïm Soutine sofria com uma úlcera estomacal, cujas condições de sua vida clandestina não permitiam que fosse devidamente tratada. Sua arte é, sem dúvida, a manifestação maior da sensibilidade expressionista desenvolvida fora da Alemanha, fundamentada na deformação violenta de figuras humanas, dos espaços e objetos, sobre a espessura de uma matéria pictural que parece viva e orgânica, e sobre a riqueza de uma paleta às vezes estridente. Seus retratos, paisagens e naturezas mortas são um turbilhão pictural, marcados por um tom trágico.”