Tristeza é vírus. Tome uma vacina

Tristeza é vírus. Tome uma vacina

Piolho pega, bocejo pega, conjuntivite idem e euforia às vezes nos  contagia (sobretudo durante o carnaval). A tristeza também não foge à regra. Ela manda seu recado, em sussurros, dirigido aos desatentos indivíduos deste século. Mas pega mal ficar triste. “Maior caô”, “pagação de mico” entoa a galera lá do alto da exuberância dos seus vinte e poucos anos. Ficar xoxo, amuado, macambúzio, lamuriento não combina com a alegria prozac, nem com a metáfora da cocaína atitudinal, refletida nos tempos modernos.

Sai pra lá urubu, te esconjuro, coisa cinza. Engraçado, né, quando paramos para analisar certas regras e ditames contemporâneos, relativos às sugestões de bom comportamento.

Hoje é proibido ser criança demais. Chegou aos seis anos, foi promovida de garotinha à mocinha. Especialmente se a criança já tiver incorporado o hábito de fazer as unhas aos sábados na manicure. Mãozinhas afoitas, rechonchudas e vaidosas, pertencem à compenetrada mocinha no salão, que muitas vezes troca a boneca pelo tablet ganho recentemente de presente do pai.

Hoje também é proibido envelhecer. Dá a maior deprê, confirma a gíria. Então, se apresse e separe uma grana aí para tratamentos estéticos intermináveis e cirurgias plásticas pagas a perder de vista no crediário das ilusões teimosas.

Aliás, a gente tem que vestir uma espécie de verbo no gerúndio durante nossa existência, de modo a entrar de cabeça neste processo contínuo de “estar sendo” sempre. É exatamente deste jeito: com o passado, o presente e o futuro embutidos neste tempo verbal, no qual deslizamos nossa vida-móvel pelo cotidiano — e tentamos, desesperadamente, congelar as rugas. Condenar a flacidez ao exílio. Uma questão de higiene se manter jovem, vale esclarecer.

As pessoas acham que talvez assim enganem os relógios. Consigam empurrar os desalentos pra bem longe. Os homens também, na atualidade, não escapam a estas crenças, tão assentadas em clínicas de estética afinadas com as demandas viris. Mascaras para peles oleosas, secas, inseguras e até desacreditadas pela ala feminina.

A tristeza, se a gente não ficar de olho, pode virar epidemia (claro que camuflada, debaixo dos tapetes da cordialidade, sociabilidade e comedimentos — posturas sempre exigidas de nós).

Gustave Flaubert, escritor francês do século 19, já advertia sabiamente: “Cuidado com a tristeza. Ela é um vício”.  Jean-Jacques Rousseau, filósofo e escritor suíço do século 18 sublinhou certa vez: “A alma resiste muito mais facilmente às mais vivas dores do que à tristeza prolongada”.

Alguns médicos acreditam na somatização. Afirmam que a tristeza, quando é muito grande, não cabe dentro do corpo e aí vira insônia, depressão, apatia e câncer.

Haverá algum antídoto contra este decadente sentimento? Dizem que o governo começará a distribuir em breve, assim como faz com a vacinação contra a gripe, vacinas contra os soturnos crepúsculos que às vezes atravessam nosso peito.

Os políticos, por sinal, já estão fartos de ver o povo rodeado de #mimimi, fazendo beiço diante das falcatruas em série (de antemão já absolvidas — importa esclarecer — na pia batismal do próprio congresso). Pau que nasce ruim fica torto. O antigo ditado prega mais ou menos isso. Aproveitamos, então, para acrescentar: roubalheira que nasce faceira só se enfeita mais, à custa, por exemplo, dos impostos que nos corroem como ratazanas frente a um gorduroso queijo amarelo.

Mas o povo nem se toca. Engrossa o coro atrás do pobre gigante que, dormindo há séculos em berço esplêndido, tem sido, ultimamente, acordado às sacudidelas. Tudo pelo social.  Deixa te depenar, o gigante resmunga. Entretanto, parece que o povo sozinho já decidiu se despedir da fantasia de palhaço e sair de cara limpa nas ruas. Ou, então, mascarado, quando quer competir com o visual robótico das tropas de choque. Sai pra lá Zé Mané, que os ladrões te pegam no pé.

Vinícius e Tom Jobim, saudosos poetas, também suplicavam em uma de suas canções: “Tristeza, por favor vá embora, minha alma que chora está vendo o meu fim” . A música virou até marchinha de carnaval, amuleto para a alegria e comemoração de novos amores, salpicados de confete e lança-perfume nas noites regadas a folia.

Em 1954, aos 19 anos, a jovem Françoise Sagan, lançava seu primeiro livro: “Bonjour Tristesse” (Bom Dia Tristeza), em Paris, percorrendo as vielas do romance psicológico francês. Inspirada no existencialismo de Sartre e em Simone de Beauvoir, a jovem escritora aderia ao modismo de cultivar uma prosa seca, quase austera, na qual os personagens se deixavam envolver pela solidão.

Mas, voltando à nossa rotina, imagine se, logo ao acordar, você decide oferecer seu abraço à tristeza, com um ensolarado bom dia. Receita quase infalível contra a angústia e outras perebas que ameacem se alojar na sua pele ou invadir seu coração. Uma recepção destas, garantimos, é tiro certeiro contra as sombras. E, melhor que tudo, deixam qualquer vacina no chinelo.

Graça Taguti

Professora e escritora.