Essa mania de vivermos felizes para sempre

Essa mania de vivermos felizes para sempre

Na dúvida, pergunte a uma criança.

Por que acordar com o pé esquerdo não faz de mim um gauche na vida? Por que os ombros do mundo não suportam a poesia de Drummond? Por que tolerar intolerantes que desperdiçam os chopes dos bares em happy-hours que só me deixam triste? Por que não respirar fundo, cair dentro e arriscar: nadar, nadar, nadar e morrer de amor na praia?

Por que anda tão difícil dobrar os corações com um poema? Tem alguma coisa errada: por que chove tanto canivete na minha aorta? Por que a moça do tempo não entra agora mesmo por aquela porta e anuncia que amanhã vai ser o melhor dia das nossas vidas, faça chuva ou faça sol? Por que estamos sempre sujeitos ao mau tempo, às pancadas de dúvidas?

Por que não dar algum crédito aos que não creem em estátuas feitas de barro? Por que continuam a servir rissoles frios para os ateus nos coquetéis? Por que cuspir no guaraná deles? Pra que tanta maldade, meu amor? Por que a garçonete não se casa comigo? Por que a fila de fiéis só aumenta nos altares das agências lotéricas? Por que Deus não deixa de onda e me dá logo um maravilhoso par de asas? Por que as cobras sonham voar?

Por que papai está batendo na mamãe? Por que as crianças insistem em dizer a verdade, doa em quem doer? Por que as mulheres gostam de apanhar dos homens as flores que estão no canteiro? Por que não bater nelas com uma rosa, assim, devagarinho? Por que as palavras machucam mais que os bofetões? Por que, simplesmente, não fazer a mala, desejar boa sorte e cair fora?

Por que — apesar de comermos juntos no mesmo prato — a solidão aqui dentro não me devora? Por que rivotril se tem música tocando no jardim? Por que os passarinhos estão voltando? Por que não há gaiolas para conter caralhos-de-asas? Por que basta um bocado de grosseria para comprometer um texto fofo que estava indo tão bem?

Por que essa mania de vivermos felizes para sempre? Por que a morte nunca nos parece tão comemorável quanto um gol ou um parto? Por que partir quebra os corações? Por que a saudade bate mais forte nas noites de domingo? Por que esperar tanta vida após a morte se podemos usufruir dela aqui e agora? Na boa: pra que viver por toda a eternidade? Aonde é que isso tudo vai dar?

Por que a alegria é fugaz e a tristeza perene? Por que Irene riu, Irene riu, Irene riu? Por que nunca choramos lágrimas sabor doce de leite? Por que motivo você não me lambe com a testa? Por que ando mais emotivo que o meu cachorro? Que calor! Por que São Pedro pensa que somos todos hidrofóbicos?

Por que dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade, se você pode mentir, somente mentir, nada mais que mentir, e me fazer feliz? Por que você quis sair com aquele sujeito? Por que a água acaba, o gás acaba, o amor acaba, mas o ódio continua firme e forte? Por que perpetuar a espécie num planeta tão caótico? Por que gozar na boca da noite? Por que exigir que alguém engula a porra dessa história toda?

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.