Viver é uma espécie de loucura que a morte faz

Viver é uma espécie de loucura que a morte faz

Alguém disse que chegou a primavera. O brilho do orvalho nas pétalas nascidas deu bom dia à aurora, há flores e cores mais vivas que outrora. Cantam os colibris e dançam as andorinhas. Pincéis pintam a sua lembrança… Você se inquieta: “Como primaverar pela da vida se folhas de outono ainda caem no meu caminho?”.

É a angústia cravada no peito. Um vento frio e cinzento que te arrasta pelos dias, acumulando dores amareladas pelo tempo e solidão. Todo mundo sofre. Uns mais, outros menos, mas a alma de todos nós carrega um lamento. Seja pela família que se desfez ou por alguém querido que morreu, por uma desilusão no amor ou por um projeto que não deu certo, ou seja pela incompreensão da miséria desse mundo devastado pela ignorância do ser humano; o desgosto nos abraça ao fim do dia. E o vento sopra mais solene que a última esperança dos homens vazios.

A vida, porém, é inexorável e não espera a dor passar, ela segue em frente. Ela muda de estações mesmo quando ainda não estamos prontos. É como sentir frio no verão, ou ficar triste enquanto os outros festejam. Porém, mesmo que você esteja sofrendo, ainda é preciso trabalhar, pagar contas, ser cidadão de si mesmo e do mundo.

O mais difícil não é tocar os dias, incrivelmente o ser humano se adapta. Mas chega uma hora em que percebemos como o tempo está passando cada vez mais rápido; enquanto feridas demoram a cicatrizar e galhos secos insistem em não caírem.

É quando você decide reinventar a primavera. Ela não precisa ser igual a dos outros, só precisa ser sua. Com seus próprios lírios e rosas e jasmins, e o perfume da sua própria história.

Você sabe. Iniciar um projeto sem garantias que dará certo, ou correr atrás de um sonho perdido na infância, assim como declarar um amor secreto, todo e qualquer passo diferente da rotina pode parecer muita loucura para aqueles que nunca se arriscam.

Loucura deve ser viver sem vida, e viver uma única estação o ano inteiro. Viver como se estivesse ligado a aparelhos em uma cama de UTI. Viver sem descobrir o essencial para si mesmo, e sem encontrar o seu propósito aqui nessa terra devastada de homens desiludidos. Homens que se perdem entre ideia e realidade. Homens que preferem suas agônicas raízes à chuva da primavera, aqueles que não se aventuram pela esperança da vida e o medo da morte.

Viver é atrever-se. É procurar a pureza da alma na mediocridade do mundo. É sobreviver na metrópole dividida entre o bem e o mal.

O atrevimento também nos ensina a perdoar os outros e a nós mesmos. Porque enterramos nossos sonhos mortos para cultivar a terra que renovará a vida. Porque deixamos a felicidade chegar, apesar das intempéries do tempo, varrendo as folhas secas do nosso caminho.

Cultivemos a fé na nossa saudade. Mesmo se esse for para você o ‘mais cruel dos meses, em que lilases germinam do solo morto, avivando memória e desejos, relembrando o inverno que te agasalhava e nutria seus secos tubérculos que ainda restavam vivos’; atreva-se. Não queira viver em uma terra desolada e povoada por homens ocos.

Vamos nos conectar uns aos outros e a nós mesmos enquanto houver tempo. Conexões por palavras, toques e sentidos. Juntemos as pétalas de nossas flores despedaçadas e façamos um novo jardim de ternuras. Juntemos nossos ossos fragmentados pelas nossas próprias guerras. Não sejamos uma geração perdida nela mesma e na desolação de sua alma.

Há multidões que perambulam em seus círculos de dúvidas, mas nós faremos um novo caminho. Afinal, “fim é o lugar de onde partimos”. Como disse T. S. Eliot, “uma pessoa quer é ver-se livre de alguma coisa que lhe pesa no peito. Não sabemos que coisa nos pesa no peito antes de a conseguirmos tirar de lá”.

* Título tomado de empréstimo do livro “Um Sopro de Vida”, de Clarice Lispector.

Rebeca Bedone

é médica.