Umberto Eco é um gênio esgotado, preguiçoso ou um fanfarrão? Ou tudo ao mesmo tempo agora? Sim, essa é uma abertura provocativa e, deliberadamente, bombástica, para tentar chamar sua atenção. Porém, para além disto, mais uma vez sigo o sábio conselho com o qual o venerável mestre Antonio Candido abriu seu “Literatura e Sociedade”: “Nada mais importante para chamar atenção sobre uma verdade do que exagerá-la”.
E a verdade é que sempre que Umberto Eco lança um novo romance ele se torna figura onipresente nos cadernos culturais. São entrevistas e mais entrevistas, resenhas e mais resenhas. Normalmente, entrevistas repetitivas e resenhas mornas, elogiando a nova obra, sem aprofundar muito. Logo depois, salvo em trabalhos acadêmicos sobre o autor, pouco se fala sobre o tal livro. No inconsciente coletivo da intelectualidade, Umberto Eco ainda é o autor de “O Nome da Rosa”, que começa a ganhar merecido status de clássico, e personagem símbolo da cultura ocidental, de algum modo substituindo Jorge Luis Borges, não por acaso um de seus ídolos.
O que é muito justo. Parece-me que, possivelmente, ele é o mais culto dos homens vivos. Quem poderia lhe ser superior nessa inútil gincana de memória de elefante? Habermas? Harold Bloom? Bento XIV? Nenhum deles, uma vez que essas ilustres figuras são gente séria, não se ocupando, pelo menos não publicamente, de assuntos que consideram menores, tais como cultura pop e popular. Umberto Eco não possui tais preconceitos, ou escrúpulos. Dá xeque-mate em seus concorrentes no quesito versatilidade. Em inúmeras ocasiões demonstrou seus vastos conhecimentos sobre cinema trash, desenhos animados, literatura pulp, pornografia, fofocas sobre subcelebridades em geral, histórias em quadrinho, a saga do Super-Homem, o urso Zé Colméia, internet e assuntos afins. Tudo convivendo lado a lado com sua sólida formação em semiótica, filosofia, teologia, história, alta literatura, artes, mitologia, conhecimentos consideráveis em ciências duras e, como bom italiano, música erudita. E muito mais. Eco é uma espécie de Google humano. Essa facilidade em unir cultura erudita e cultura de massa, de modo bem humorado, transformou-o numa espécie de consciência geral de nosso tempo, um tipo de Grilo Falante Pós-Moderno. O problema é que, receio, às vezes, ele acredite mesmo nisso.
Em termos literários, Umberto Eco não pode ser reduzido ao papel de autor de um livro só. Além de “O Nome da Rosa”, escreveu o ainda melhor “O Pêndulo de Foucault”. Um romance, infelizmente, subvalorizado, mas com tema, personagens e enredo brilhantemente desenvolvidos. Mas foi só.
Claro que esse “só” é maneira de “dizer”. Produzir dois romances geniais, além de inúmeros livros teóricos fundamentais para diversas áreas das Ciências Humanas, constituem feitos colossais. Certamente, vão lhe garantir um lugar na História. Mas tenho sérias dúvidas se é o suficiente para colocá-lo no panteão, entre os Grandes, os realmente Imortais, como o citado Borges, Mann, Kafka e outros VIPS. Se tivesse que apostar meu suado dinheiro, hoje, diria que não. Eco não entra para o clube. O que também é justo, considerando que, assim como Roberto Carlos, Eco passou os últimos 20 anos vulgarizando sua obra de ficção. É um esforço gigantesco que resultou em milhares de páginas que variam entre o mediano e o descartável. Li cada uma delas. Mais de uma vez.
Quando lançou o “Nome da Rosa” em 1981, Eco termia ter se esgotado como ficcionista. Mas esse foi um projeto técnico, no sentido de que o escreveu usando seus vastos conhecimentos de crítico literário e medievalista, gigantesca capacidade de trabalho e intuição de leitor voraz. “O Nome da Rosa” é, acima de tudo, a montagem de um complexo mosaico literário. Eco gastou tinta, dedos e cérebro para escrevê-lo, não sangue, suor e lágrimas. Percebeu que poderia ser mais pessoal em sua literatura e o resultado foi o “Pêndulo de Foucault”, colocando nele tudo que lhe interessava, emprestando aos personagens inclusive suas memórias de infância, durante a Segunda Grande Guerra. Demorou sete anos na tarefa. Depois desse livro, o sentimento de esgotamento retornou. Desta vez estava certo.
Em 1994 publicou o interessante, mas levemente decepcionante, “A Ilha do Dia Anterior”. Tudo bem, não dá para produzir obras-primas como se produz pizzas, por mais italiano que se seja. Em 2000 veio o fraco romance histórico “Baudolino”, um livro que deixou a sensação de ter sido escrito às pressas, sem grandes pretensões, feito para ser apenas uma aventura imaginativa. Interpretei-o como o respiro do artista, a folga antes do canto do cisne. Quatro anos se passaram e saiu o ambicioso “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, obra lindamente ilustrada que tinha tudo para ser um novo triunfo, mas que resultou em decepção: o tema, a questão da memória individual em relação à memória coletiva, foi desperdiçado; os personagens pouco desenvolvidos, o enredo ficou cheio de pontas soltas e tempos mortos, apresentou um final preguiçoso ao estilo Saramago e Italo Calvino, do tipo “cansei de escrever, vou terminar o livro”. Comecei a ficar irritado. Quando, em 2010, foi lançado “O Cemitério de Praga” li-o cheio de desconfiança, embora, como sempre, esperançoso. Infelizmente, mais uma pizza queimada: o enredo é inverossímil e mal desenvolvido, os personagens antipáticos e sem carisma, a narrativa, mais uma vez, preguiçosa e repleta de clichês. Umberto Eco tornou-se um imitador de si mesmo. Pior, imitava Dan Brown, autor de “O Código Da Vinci”, que por sua vez imitava e vulgarizava o Eco dos anos de ouro.
Agora, em 2015, com o lançamento de “Número Zero”, Umberto Eco foi mais longe, ele não apenas imita e vulgariza o autor que um dia foi ao escrever “O Pêndulo de Foucault”, como se autoplagia toscamente. O enredo do novo romance, como foi amplamente divulgado nos cadernos culturais, físicos e online, se passa em 1992, ano da Operação Mãos Limpas, que, literalmente, limpou a Itália de diversos esquemas criminosos que assolavam o país, mas que, como efeito colateral, gerou um vácuo de autoridade que ajudou a colocar no poder o milionário da mídia Silvio Berlusconi, uma mistura patusca de Roberto Marinho, Assis Châteaubriant e Silvio Santos à italiana. O mau jornalismo e suas consequências parece ser o tema. Poderia ser a má literatura.
Os problemas começam na primeira página, onde é apresentado um mistério que já não é dos mais empolgantes e que deveria iniciar o suspense da trama. Sua resolução, sugerida quase ao final, é feita da maneira mais despojada e desinteressante possível. Entre uma coisa e outra, o que encontramos é uma comédia de erros. O protagonista é o cinquentão enxuto Colonna, um perdedor excessivamente consciente (fala sobre isso o tempo todo), que trabalha como ghost-writer (“nègre”, como era chamado da Itália, antes da era do politicamente correto) e tradutor de alemão. Esse é o tema do primeiro autoplágio que consegui identificar, presente na página 15 da edição brasileira, um parágrafo que lembra muito um trecho de “O Pêndulo de Foucault”: “ou você traduz alemão ou se forma, as duas coisas juntas não dá para fazer”. Na página 64 é pior, encontramos um período que cópia quase palavra por palavra, em contexto diferente, um dos diálogos mais famosos de “O Nome da Rosa”, sobre herborismo. Na página 92 o autor recicla um artigo da década de 1990 sobre a então recente moda dos telefones celulares. E a coisa vai, em detalhes menores ou maiores.
Mas esses autoplágios são o menor dos problemas. Com um pouco de boa fé e complacência podemos considerá-los honestas autocitações, merecidas auto-homenagens, inocente masturbação intelectual, “easter eggs” ou mesmo que o idoso autor simplesmente esqueceu-se que usou tais ideias em outros lugares. Seriam apenas ecos de Eco em Eco. Justo.
O problema está na frouxidão no desenvolvimento do tema e do enredo. O problema está na galeria de personagens clonados, muito melhores em suas encarnações anteriores. O problema está nos diálogos engraçadinhos, requentados de outros livros. O problema está na abertura de assuntos, que ameaçam ser importantes, mas que são solenemente esquecidos. O problema está nas teorias conspiratórias sem novidades. O problema está nos coadjuvantes sem carisma e irrelevantes. O problema está nas discussões exageradamente didáticas, que deveriam ser elucidativas e/ou eruditas, mas que parecem resultados de pesquisas rápidas feitas no Google. O problema está na falta de um clímax, ou, por outra, um clímax anticlimático. O problema está no desfecho que deveria ser cínico, mas que se revela ingênuo, contando com um “moral da história”.
Essas são minhas impressões iniciais sobre “Número Zero”. Se tivesse que lhe atribuir nota, não seria zero. Não faria isso nem para gerar um efeito “esperto” no texto, não me permito descer tão baixo para chamar sua atenção. Fica no máximo com cinco de dez, sendo generoso. Claro que estou escrevendo no calor do momento. Pode ser que o livro seja reavaliado. Sempre é possível. Mas é o que temos para hoje.
Antes que me esqueça, há um ponto positivo (ou não). Depois de uma sucessão de calhamaços, sempre entre quatrocentas e seiscentas páginas, o novo livro só tem duzentas, em letras grandes e espaçadas. Não se perde muito tempo. Afinal, talvez a verdade seja que eu sim estou preguiçoso ou esgotado. Ou sou um leitor fanfarrão.
Para fechar, não podemos descartar a possibilidade de que Eco não escreva os romances que assina desde a década de 1990. É possível que o fato do personagem Colonna ser um ghost-whitter seja uma pista, uma piscadela irônica para os desocupados que ficam discutindo as causas do fim de seu talento narrativo, ao invés de lerem literatura clássica de verdade. Talvez Eco, humildemente, não se considere digno de entrar para o panteão e se sabote. Talvez esteja realizando uma longa performance artística, para denunciar o caráter superficial da indústria cultural que transformou um professor universitário em celebridade internacional. Talvez só fiquemos sabendo desse projeto numa carta testamento.
Pode ser ainda que Eco só esteja cumprindo contrato, entregando um romance de vez em quando para editora, para garantir alguns milhões de dólares a mais nos baús guardados nos porões do castelo medieval que comprou.
Se qualquer uma dessas opções for verdadeira, a resposta é que Eco é, definitivamente, um gênio fanfarrão.