Deus não nos salvará; mas morrerá conosco

Segundo a hipótese mais aceita nos meios científicos, a vida teria surgido há cerca de 3,5 bilhões de anos, possivelmente em algum lugar da Terra. Ou mesmo em algum planeta de um sistema próximo (em termos cosmológicos) e pode ter vindo parar aqui na garupa de estilhaços retirados de algum corpo celeste por cataclismos de dimensões interestelares. Deduz-se que a vida começou em um ambiente singular, cujas características o Homo sapiens ainda não logrou reconstituir e entabular uns serezinhos animados para concorrer aos já existentes.

Aquele foi um momento mágico de nossa ancestralidade, quando por confluência de condições especialíssimas, por mero acaso dos dados atirados pela natureza cega e sem propósitos, pequenas porções de matéria, inertes e insensíveis, recebem uma chama, uma faísca interior e ganharam autonomia. Essa possibilidade, por exemplo, que tem um pássaro de, uma vez libertado da gaiola, pousar no fio de luz, num filete de antena, no galho de uma árvore próxima ou mesmo se embrenhar no mato num voo aparentemente descontrolado. Não só autonomia, mas também outros importantes atributos tais como: metabolismo, reprodução, nutrição, complexidade, organização, crescimento e desenvolvimento, conteúdo de informação, emaranhamento de software com hardware, além de permanência com mudança. Ufa! No poema “Ovni”, do livro “Na Vertigem do Dia”, Ferreira Gullar intui que “sou possivelmente/uma coisa onde o tempo/deu defeito”.

E, também por mero acaso, esses seres microbianos dos primeiros dias, em demorados processos de tentativas e erros, acabaram por desenvolver as espécies, até chegar nos bípedes implumes dotados de inteligência e arrogância de hoje.

Para a ciência, somos seres de baixíssima probabilidade. Afirmou o biólogo Ernest Mayr que: “Sobre a terra, entre milhões de linhagens ou organismos e talvez 50 bilhões de casos de especiação, apenas um conduziu à inteligência elevada. Isso nos leva a crer na sua completa improbabilidade”. Ainda sobre a quase impossibilidade matemática da existência humana, o biólogo Stephen Jay Gould afirma que nossa saga “contém tantos acasos do destino, tantas singularidades arbitrárias, que tornam o padrão de mudança essencialmente aleatório. Os milhões de passos fortuitos que constituem a nossa linhagem certamente nunca aconteceriam pela segunda vez. A história da vida na terra é uma loteria gigantesca, com muito mais perdedores do que felizardos”.

E por falar em singularidade, poderíamos afirmar que o homo sapiens se encontra sobre a terra em um momento singular. Não uma singularidade física cosmológica em que as forças da natureza de repente começam a não funcionar mais do jeito que era antes. Apesar de que já presenciamos certas doidices do clima, com desertos se instalando sobre terras férteis, rios abandonando a calha e se espalhando sem rumo pelas chapadas, o sol queimando as pessoas como chama de maçarico, o aumento da janela entre calor e frio, a irregularidade das estações, baixíssimas umidades do ar, derretimento das geleiras polares, desaparecimento em escala das espécies, tufões em locais inesperados e muito mais.

A singularidade que vivemos é exatamente a da condição humana, em seu desenvolvimento cultural e tecnológico. Até onde se conhece, é a primeira vez na história que o homo sapiens chegou a desenvolver ferramentas e estratégias capazes de intervir no meio ambiente de modo radical e conclusivo; seja para o bem, seja para o mal.

Chapadões inteiros são arrasados por tratores atrelados por correntes, levando de eito a flora e a fauna. Animais são empurrados para locais insalubres e depois para a morte. Plantas desaparecem antes mesmo de serem conhecidas. Nascentes são sufocadas e represas monumentais se instalam em vales verdejantes, mudando inclusive o ponto de massa do planeta, com consequências imprevisíveis, pois ninguém teve o cuidado de avaliar.

Talvez seja a primeira vez na história que uma espécie animal tem nas mãos o poder de autodestruir-se ou de autopreservar-se. Uma chance que os dinossauros, por exemplo, que ocuparam a terra por cerca de 170 milhões de anos, sequer aventaram. Entre os dinos e um bicho com poder de pensar se passaram cerca de 64 milhões de anos. Comparando com o tempo que esses animais pré-históricos dominaram a terra, nós estamos ainda recebendo os primeiros cumprimentos de boas vidas ao planeta.

Parece que o poder de pensar, — o que nos distingue de outros animais —, é o que nos torna sinistros. Mal acabamos de chegar a este lugar que nos recepcionou com seu clima ameno e favorável e já atiçamos fogo na terra tombada e pedimos pra ver o oco. Construímos bombas e outros artefatos de guerra numa proporção desembestada. Hoje existem tantas ogivas nucleares em estoque que a terra periga explodir-se. E nem precisará ser num ataque suicida de alguma potência tresloucada, mas num simples desleixo no acondicionamento e conservação dessas máquinas iradas a serviço da morte coletiva.

Porque a morte particular, individual, essa continua como um instrumento controlador da vida. E pode chegar de modo tão inesperado, a ponto de me interromper na digitação da próxima vogal. Apesar de que a ciência posta a serviço do desenvolvimento elevou a expectativa de vida de pouco mais de 30 anos na época do Brasil Império para 73 nos dias de hoje.

A morte individual sempre nos consterna, no entanto faz parte de nossa condição e cultura. Já a morte que nos ameaça de fato é a morte coletiva, da espécie inteira, de forma abrupta por algum acidente global ou por asfixia de nossos biomas. Contra essa morte temos muito o que fazer e podemos fazer de fato.

O problema principal é que nossos hábitos de existência, depois de passarem pela época do ser e do ter chegaram à época do parecer. E parecer demanda consumo crescente, numa escala que a natureza não está apta a suportar. E pelas mesmas condições de parecer, quem poderia fazer alguma coisa (quase todo mundo pode) apenas parece que faz. Basta observar as grandes corporações que destroem a natureza em escala planetária. Todas elas têm publicidades de beleza ofuscante que apregoam seus cuidados (falsos) e benesses (de araque) para com a natureza. Porque hoje o importante não é fazer, mas ser percebido como se fizesse: é o chamado marketing societal. Todo mundo quer fazer o seu marketing societal particular.

As condições extremas que nos levarão ao desaparecimento, por certo levarão de eito outras espécies, que se acham vulneráveis como nós. Inclusive desaparecerão os deuses, os santos, os espíritos-luz, os anjos, os avatares e toda plêiade transcendente, vez que são resultantes de nossas lucubrações mentais. Nenhuma outra espécie pensou a existência de Deus. Sejamos menos arrogantes. Façamos alguma coisa por nós mesmos, enquanto é tempo. Porque Deus não virá em socorro de nós e ainda morrerá conosco.

Edival Lourenço

Escritor.