Chora, baby! Você está sendo filmado!

Chora, baby! Você está sendo filmado!

Nessa vocês não vão acreditar: tem um urubu bebendo água na piscina lá de casa. Não percam o seu valioso tempo: não há nenhuma dubiedade, nenhum significado figurativo nas entrelinhas dessa frase. E mais: não torçam o nariz. Por favor. Eu não sou rico, mas tenho sim uma piscina em casa, daquelas em que a gente mergulha a cada cinco anos, a pedido das crianças. Quando muito, as piscinas domiciliares prestam-se para fazer o dinheiro circular no mercado, ou seja, a grana sai do bolso da gente e vai parar direto nas mãos dos piscineiros, se é que me entendem.

Voltemos à história do agourento animal. A coisa acontece assim: o bicho sobrevoa o perímetro, põe tento no oásis azul, fareja a água — urubus tem um olfato incrível, captando desde as substâncias inodoras até as piores fedentinas, como os conluios políticos —, imbica o voo para dentro do meu quintal, pousa na borda da piscina e mata a sede. Eu sequer supunha que urubus bebiam água. Pensei que só brindassem com o sangue talhado das carniças.

Lola, a cadelinha, apesar de minúscula, é guerreira, mais valente do que eu mesmo, e afugenta a ave feiosa com muita correria, ganidos e latidos. Ela fica simplesmente injuriada com a petulância daquele intruso. A cena repete-se muitas vezes, é picaresca, engraçada: ela afugenta o malandro, ele finge que escapa em revoada, contudo, plaina, dá uma voltinha, ouve-se um lufar de asas, e ele pousa novamente à beira da fonte límpida, nem bem a cachorrinha vira as costas.

Mais ocioso que o capeta numa guerra, eu até pensei em gravar a coisa toda com o meu telefone esperto e publicar as imagens nas redes sociais — quem diria, justo eu, uma das criaturas mais antissociais que conheço. O povo aprecia bobagens, diverte-se com as imagens gravadas, compartilha as bizarrices do cotidiano como, por exemplo, uma turba de populares amarrando um jovem delinquente nu num poste, ou um papa-defuntos manipulando as tripas de uma celebridade morta como se fosse um pizzaiolo a preparar uma macarronada ao molho de formol. Sentiram um embrulho no estômago? Eu também. Mas a vida é assim mesmo: misteriosa, louca e pouco palatável. Relaxem. Parodiando Nelson Rodrigues, toda náusea será perdoada.

Com cerveja gelada a escorrer pelo duto esofágico, passei a avaliar mais friamente a situação. Eu não gostava nem um pouco de fazer filmagens. Eu sequer tinha paciência para fotografar. Também não nutria afinidade alguma pelos urubus, embora reconhecesse a relevância daquele pássaros carnívoros no bojo da cadeia alimentar — eu, por exemplo, me amarro em churrasco. Nunca me atraíram as asneiras publicadas nas redes sociais, nem mesmo as mulheres nuas a peidarem umas nas caras das outras, que o Wanderley me manda a cada meia hora e que vão direto pra lixeira. Pô, Wanderley, você não trabalha, meu filho?

Ora, os posts fofinhos não levantam a audiência, não levam a nada, eu sei, já conheço os meandros do sensacionalismo virtual. Ninguém vai achar obsceno o suficiente que os beija-flores voem por aí a chuparem flores de trepadeiras, ou que os casais de idosos beijem-se de língua renovando a química de uma vida inteira — em tempo: vovô e vovó ainda trepam sim, senhor —, ou que os amores não correspondidos morram irremediavelmente à míngua sem responderem a que vieram. São poucos os que se detêm às coisas simples da vida, como a chuva fina que cai na relva ou a meninada tomando um banho de rio. Dá até vontade de chorar: a curiosidade mórbida do ser humano clama por escândalos. Algo do tipo: “Uau! E se fosse eu ali na tela, e se todos soubessem dos meus podres?”.

Os espetáculos de vexame animam o circo das mídias sociais. E há de um tudo nessa seara insana. Uma gata que não tem nada a dizer pagando sexo oral pro namorado — hoje, seu ex-namorado. Um padre flagrado com dízimo na batina. Um lunático dando um tiro no céu da boca. Um aleijado pulando a cerca com sua cadeira de rodas. Crianças em idade escolar fazendo sexo com marmanjos escolados em pedofilia. O Papa xingando puta-que-o-pariu numa tensa homilia reservada aos bispos do planeta. Um carpinteiro batendo punheta com um martelo. Joãozinho-Sem-Braço trabalhando de ginecologista num convento. Uma multidão incrédula pedindo o impeachment de Deus. O estupro coletivo das normas gramaticais pelos universitários. Um escritor amargo que morde a língua e morre na frente dos leitores.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.