Jesus está voltando. Por falar nisso, acho que já vou indo

Jesus está voltando. Por falar nisso, acho que já vou indo

Hoje, eu tinha tudo para escrever um dos textos mais amargos que os seus olhinhos amendoados já chuparam: meteram um revólver na fuça do meu pai (um velhote de 75 anos), o vizinho do lado morreu afogado (um garoto de 3 anos), atropelei um cachorro na avenida (o bichinho — pobre coitado — virou do avesso pelo próprio ânus).

Prossigamos sem comédia e melodrama. Não é que o mundo me pareça de todo cabuloso: uma bala perdida que acha a carótida de um inocente; uma macumbeira atingida n’alma com pedras de sal atiradas por cristãos (também não gosto do termo “macumbeira”, mas é assim que os religiosos preferem rotular essa gente); uma víscera infantil que dilacera com o gozo de um maníaco; um gay que tem a língua decepada por transeuntes intolerantes por causa de um beijo na praça de alimentação do shopping; uma criança que pensa ser peixinho e afunda — curiosa, pedra, roxa — na piscina de casa, enquanto a família almoça; um velho a deteriorar solitário e triste sob o faro indefectível de urubus que sobrevoam o bairro. Além de se enganarem com as crendices e os perfumes, os parentes não voam. Essa fedentina todo mundo já conhece. Portanto, eles quase nunca aparecem pruma visitinha. Não sei quanto a vocês, mas, o teatro da vida há tempos me aturde.

Não é que eu esteja de todo curtindo a leitura de um Nietzsche, de um Schopenhauer. Não. Eu sei que todo pessimista é um chato. Ouvi Ferreira Gullar dizer isso numa entrevista e achei o máximo. Estou tentando ser o mais agradável possível, mestre. A despeito de não ter nascido em Itabira — berço-usina de Drummond — para todos os fins que se fizerem necessários eu me declaro poeta. Gozo de uma saúde de ferro, embora os sonhos pareçam todos enferrujados.

Não é que eu cultive de todo uma visão enviesada a respeito da vida e das pessoas. Posso estar errado. Devo estar errado. Eu errei. A propósito, ando errante por tantos lugares que nem sei. A saga de (re)conhecer as regras do mundo é animal, mas isso nem de perto me anima. Alma. É preciso um pouco mais de alma. Eu preferiria mil vezes o conformismo dos mansos. Já não sou tão jovem quanto supõem esses neurônios. Isso justifica, em parte, a considerável perda de elã. Sinto um orgulho desgraçado dos meus dezessete anos, um tempo no qual fui muito bom em matéria de mim mesmo.

Não é que eu faça questão de conhecer no todo os segredos da existência neste e noutros planetas, nesta e noutras galáxias. Não. Eu não acredito em discos voadores, padres, duendes, bulas, e elogios de prostitutas. Não insistam. Eu não sou “o fodão”. Olhem, tomar um chope comigo já seria um imenso tédio.

Não é que eu seja de todo incrédulo. Eu juro pelo pudim de leite condensado que está na geladeira que eu desejava sim escrever um texto muito mais ameno no dia de hoje, um texto abaixo da média das minhas lucubrações existencialistas. Palavras são espinhos, mas podem também fazer cócegas (certamente, um dos vernáculos mais feios da língua portuguesa, depois de “catarro”; “catarro” é disparadamente o mais horrendo).

Não é que eu reivindique possuir a sagacidade e a profundeza que a média dos idiotas possui. Não. Todos os risos correm para o mar? Os riscos, com certeza, sim. Não sei. Eu me amarro em trocadilhos. O choro, não. O choro só represa a gente, é como um estribilho. É por isso que, decorrido quase meio século de existência, ainda não me conformo comigo, com esse jeito desagradável de sabotar resenhas, de quebrar encantos.

Pra terminar, não é que os meus ouvidos estejam de todo aguçados, mas, daqui de casa, eu posso lhes assegurar que consigo escutar o burburinho de um ginásio lotado de gente a cantar sob a regência do Pastor Alemão, aquele líder religioso que foi incitado pelo famoso jornalista careca da TV a procurar, senão uma tíbia, uma rola. Ah… mesmo sem as asas de um caralho, a minha imaginação voa e gargalha. Espumando pelas mandíbulas, o raivoso Pastor Alemão derrama as suas bênçãos sobre o rebanho em transe. Ele brada em altos decibéis para bancar a notícia de que Jesus estaria voltando. E por falar nisso, acho que já vou indo. Na medida do possível, tenham todos um excelente dia.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.