Como todo mundo gosta de listas e ninguém leva humor a sério (thanks god), preferi resenhar os livros mais engraçados da literatura brasileira. É uma lista pessoal e não tem ordem. Os dez estão emparelhados. Não incluí nenhum dos meus — “A Noite dos Cangaceiros Mortos-Vivos”, “Delacroix Escapa das Chamas” etc. Mas incluiria se ninguém me acusasse de legislar em causa própria. Injustamente, claro.
Ivan Lessa foi um dos maiores escritores da língua portuguesa. Sim, pode dizer que exagero. Mas o malabarismo das palavras e o domínio de todas as formas de humor — da ironia fina ao besteirol mais cretino — faz dele um mestre da sátira. Este “Garotos da Fuzarca” reúne textos publicados no “Pasquim” (1979 a 83) e na “Status” (1982 e 83). A seleção é de Digo Mainardi (falo mais dele aí em baixo). Tem várias pequenas obras-primas neste livro. O melhor é o trecho de “Os Diários de Londres”, coluna que Ivan dividia com seu heterônimo Edélsio Tavares no “Pasquim”. Brasileiro exilado, Edélsio vive com o paquistanês viado (perdão, “homossexual”) Doce Sulfa, a irlandesa drogada Jovem Pat e o cafetão congolês Negro Ken. Os diários fazem você se engasgar de tanto rir. No dia em que eu for nomeado Supremo Editor da Nação, publico “Os Diários de Londres” na íntegra (neste livro, o trecho é mínimo) com novas ilustrações de Reinaldo Figueiredo. Até lá, vá (re) ler “Garotos da Fuzarca” que você vai ver o que é bom.
Sátira devastadora ao romance regionalista e à glorificação do miserê, um dos alicerces da psiquê nacional. É cangaceiro matando latifundiário que mata posseiro que mata bicho numa sucessão de violência sem sentido que resulta hilariante. É Glauber Rocha com LSD. Só tem uma coisa que me incomoda: o narrador que interrompe a ação para desenvolver teses e acaba por explicar a piada. Se o livro ficasse apenas na narrativa ficcional, sem as digressões filosóficas, seria muito mais letal. Mas acredite: depois deste livro, você nunca mais vai ver Graciliano Ramos do mesmo jeito.
É o avesso do livro do Mainardi. Cândido de Carvalho é celebrado por “O Coronel e o Lobisomem”, romance que virou 371 peças, 49 minisséries e 33 espetáculos teatrais (só até hoje de manhã). Mas é nas crônicas curtas, muitas de um parágrafo, que o humor dele decola. O segredo está na linguagem falsamente coloquial que parodia o jeito caipira de contar causos. Chico Anysio e Dias Gomes também correram atrás desse tipo de humor, mas José Cândido de Carvalho venceu os dois com algumas léguas de vantagem. Eu, se fosse você, lia tudo dele.
Campos de Carvalho sempre foi cult, mas de uns tempos pra cá ficou bastante conhecido pelo motivo errado: foi associado aos Rousseff da Bulgária. Ele não merecia, coitado. Quase que escolho “A Lua vem da Ásia” só por conta disso. Mas “O Púcaro Búlgaro” me agrada mais porque é curto, enquanto “A Lua vem da Ásia” continua depois que a piada acaba. O livro é o diário de uma expedição à Bulgária para localizar um púcaro, seja lá o que for um púcaro. Mas isso é só o ponto de partida para muitas digressões humorísticas sobre a vida e o propósito do significado. Lembra “Voyage Autor de ma Chambre”, de Xavier de Maistre, um dos ídolos de Machado de Assis.
O romance picaresco é um dos alicerces da literatura de humor. Mas se aventurar numa trilha já trilhada (trilha já trilhada?! Cazzo, Aran, escreve direito!) por Cervantes e Swift é coisa séria. Márcio Souza faz isso muito bem ao contar a história de Dom Luiz Galvez Rodrigues de Aria, aventureiro espanhol contratado pelo governo brasileiro para liderar uma revolução no Acre boliviano e, posteriormente, pedir a anexação ao Brasil (porque se o Brasil queria o Acre é algo que nunca saberemos). No livro, Galvez é um beberrão mulherengo que vai de cama em cama e de trapaça em trapaça até chegar ao poder. Quando eu virar Supremo Editor da Nação, reedito o livro com ilustrações bem bacanas, para ele ficar parecendo um romance do Swift ou do Cervantes.
Oswald de Andrade era um cara debochado e engraçado antes de ser sequestrado pelos Poetas Concretos de São Paulo. Os concretos produziram tantas teses ilegíveis sobre o escritor, que acabaram por afugentar os leitores, o que é uma pena. Esqueça as “concretinices” e leia este livro pelo que ele é: aventuras nada exemplares de um pequeno-burguês paulistano dos anos 1930 que corre atrás das mulheres, rouba o dinheiro dos revolucionários de 32 e navega para a Europa para implantar o antropofagismo no Velho Mundo. É bárbaro. E é nosso.
Fiquei na dúvida. Não seria óbvio demais falar do herói sem nenhum caráter? Talvez seja óbvio mesmo. Mas além da prosa elaborada, quase poética, “Macunaíma” destroça o romantismo e a crença rousseauniana no “Bom Selvagem”, outra praga da psiquê nacional. É uma sátira ainda válida. Aliás, se estivessem vivos, Mário e Oswald ainda estariam em luta contra o parnasianismo, hoje entocado na MPB, nas universidades e no Tropicalismo, que diz ser herdeiro deles, mas é a sua mais perfeita antítese. É por isso que “Macunaíma” entra na lista.
A nona posição foi muito disputada, mas fico com este livrinho do Jô pela despretensão. São textos curtos, breves, leves e de humor quase dadaísta. Onde mais você leria que “antibióticos” são “guerreiros nômades que se levantaram contra os bios, antigos habitantes da Biologia”? Só nesse livro.
“A cela era de um escuro úmido e umbroso. O nome do escuro era Waltencir.” Assim começa a saga de vingança de Levy, sacaneado por todo mundo, mas especialmente por sua prima Roshana, que dá pra todo mundo, menos pra ele. Nada faz sentido na noveleta, mas você gargalha feito uma besta. “A Vingança do Bastardo” foi publicado originalmente em forma de folhetim no jornal “O Planeta Diário”. Eleonora V. Vorsky também atende por Alexandre Machado, que junto com a mulher, Fernanda Young, criou a série de TV “Os Normais”.
Como escolher só um livro do Millôr, se tudo o que ele fez é genial e antológico? Pensei em “Tempo e Contratempo”, que é um desaforo de tão bom. Mas aí, na hora de fechar a lista, optei por “Lições de um Ignorante”, que é menos conhecido e merece ser redescoberto. A edição mais recente saiu em 2012 pelo selo Paz & Terra, da Record, mas a editora fez questão de não contar isso pra ninguém. E aí você pergunta: mas e o Luis Fernando Verissimo? E o Stanislaw Ponte Preta? E o Fortuna? E o Aldir Blanc? E o Chico Anysio? E o Leon Eliachar? E o Agamenon? E o “Perry White”? E o Barão de Itararé? E eu respondo: o único objetivo de uma lista é gerar outras listas que a contestem. Faça a sua.