A presente lista, como as listas de um modo geral, tem algo de arbitrário e aleatório. Mas na medida do possível procurei citar aqueles livros que mais fortemente me marcaram em algum momento e por isso mesmo são minhas influências mais recorrentes. É claro que influências não ocorrem apenas por admiração, mas também e, sobretudo, por antipatia. Os livros de que não gostei me influenciam, na medida em que procuro me afastar dos recursos e técnicas neles utilizados. Ative-me apenas a livros de ficção em prosa. Não citei livros igualmente importantes nas áreas de poesia, filosofia, história, ensaio, crítica literária, divulgação científica, etc. Muitos outros livros de ficção me marcaram também, como “Memorial do Convento”, de José Saramago e “Histórias Extraordinárias”, de Allan Poe, que, por questão de limites, ficaram de fora.
Não foi por acaso que este livro deu ao autor o prêmio Nobel. Uma trama comovente, uma musicalidade que embala o espírito. Veja esta frase de abertura, se não lembra uma frase musical de uma sinfonia majestosa: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou para conhecer o gelo”. Quem não arrepia?
O texto ágil e irreverente me ajudou a entender um pouco mais a rebeldia contida ou manifesta de minha geração. Da necessidade que eu tinha de dizer alguma coisa num mundo polifônico e multissurdo. Sua leitura me deu alguma voz para expor minhas angústias.
Uma trama fantasiosa e aparentemente absurda me abriu as portas para ver novas possibilidades por trás de uma realidade aparentemente trivial. Desde sua leitura passei a supor algum mistério promovendo a rotina dos acontecimentos normais.
Desde 1977 tenho este livro em minha cabeceira. Não passo uma semana sem reler algum trecho. Sua estética simples e prodigiosa não cansa de me encantar. A sonoridade, a cadência, os acontecimentos inesperado fazem dessa obra uma rara preciosidade. Borges tem muitos textos fascinantes. Mas Ficções é o máximo. O Nobel perdeu uma grande oportunidade ao não premiá-lo.
Uma obra-prima que descreve o mundo brutal na fronteira entre o Texas e o México. Na fronteira imprevisível entre a civilização e a barbárie. Este livro me tirou o sono, pela dureza e pela poesia que consegue tirar dessa brutalidade.
O texto aparentemente simples e criativo, e o clima ambíguo que não permite ao leitor saber se os personagens estão vivos ou mortos são as peças fundamentais do realismo mágico. A criatividade de Rulfo foi seminal na abertura de novos caminhos para uma nova corrente na literatura latino-americana e sua disseminação pelo mundo.
Pela primeira, e talvez a única, vi uma combinação tão acurada de jornalismo com imaginação literária. O livro reúne todos os elementos, em doses milimetricamente medidas, para a realização de uma obra-prima. O relato brutal de um assassinato de verdade não deu apenas uma obra de não-ficção. O esmero de Capote a transformou em ficção de primeira linha.
As circunstâncias em que li “A Metamorfose” ajudaram a potencializar as qualidades normais do livro. Vinha de muita subliteratura e obras infanto-juvenis. Em 1971, ao sair do interior e mudar pra capital, conheci um professor de literatura que me emprestou o livro e me orientou na leitura. Senti que se abria à minha frente um novo horizonte de possibilidades.
Um livro telúrico, um personagem rude, retrato autêntico da brasilidade profunda. Numa dicção original e criativa, adequada à rudeza do ambiente e das pessoas. Uma pequena obra-prima.
A trama enviesada, da morte para o nascimento, uma biografia contada pelo próprio defunto, são fatos que me pegaram desde o início. Mas o que mais me encanta em Machado é a lapidação da frase, o burilamento da ideia, mas passando a sensação de que tudo soa natural. Um mestre da elegância, um ouvido privilegiado na construção da musicalidade do texto.
O trabalho de linguagem é exemplar. O sertão alambicado em degraus de pureza. É claro que tem algumas platitudes e algumas cacofonias que poderiam ser evitadas. Talvez questão de gosto. Afora essas pequenas gralhas a obra é um monumento. Um monumento à cultura, à estética e à sensibilidade. Mostra como o talento é capaz de transformar fatos irrelevantes e toscos em peças de refinada cultura universal.
Quanto tomei conhecimento daquelas frases curtas e cortantes, feito estilete de malandro, fiquei encantado. A violência gratuita, de uma urbanidade barbarizada, me deixou pasmo. Talvez Rubem Fonseca tenha se tornado o profeta de uma realidade cruel que estamos vivendo sua plenitude em nossos dias. Digo da violência. Não do refinamento da linguagem nem da técnica narrativa.
O que direi sobre “Ulysses”? Acho que tudo já foi dito sobre “Ulysses”. Ali você encontra tudo o que um aspirante a escritor precisa encontrar em suas leituras. Há uma cornucópia de estilos, estratégias e arranjos literários impecáveis. Joyce: o mestre dos mestres. Li e reli na tradução de Houaiss. Estou lendo na tradução de Galindo.
A dureza da vida narrada com economia de palavras e movimentos. A vida dura refletindo no texto duro e sem adjetivos do velho Graça. Levantamento impecável de perfis com economia de recursos, onde até uma cadela manifesta sentimentos humanos. Um texto basilar para se escrever em língua portuguesa.
Antes que eu soubesse que Otto Maria Carpeaux tinha dito que “‘A Morte de Ivan Ilitch’ é uma das obras mais comoventes e mais pungentes da literatura universal, talvez a obra-prima de Tolstói”, eu já supunha que ele era isso tudo. Uma obra perfeita sob qualquer aspecto. De uma humanidade comovente e uma estética impecável. Digna da grife de Tolstói.
Um drama familiar tenebroso, em que um jovem distópico e pouco afeito à tradição, cria aborrecimentos incontornáveis no seio da família. Tudo narrado com maestria, e um sopro poético de alta voltagem. Um momento de pico da moderna literatura nacional.
A angústia congênita da Geração Beat, esta geração que fermentou a minha geração, e nos inoculou sua doidice perambulante. A maestria de Fante em narrar histórias doloridamente humanas, sem se enredar na pieguice. Um romance comovente de geração que se tornou atemporal.
Romance pungente da condição humana. Um momento iluminado de Hemingway. Uma das metáforas mais candentes de nossa condição de trogloditas precários portadores de sonhos de superação.
Neste livro, contando uma história de triângulo amoroso, Flaubert disseca a alma dos personagens, especialmente da heroína. Como o adultério era crime de ação pública na França de sua época, Flaubert foi concitado pela justiça a dedurar quem era Madame Bovary, tal o realismo de sua exposição. Ao que ele respondeu: “Madame Bovary est moi”. Esta informação é manjada. Mas o livro é melhor do que qualquer informação que eu pudesse passar.
Uma sátira impetrada por Cervantes à era dos cavaleiros de capa e espada. Uma história de loucura que atravessou os séculos e serve para chacotear ainda hoje as pretensões exasperadas que empreendemos de lutar contra os “moinhos de vento”. Uma das peças seminais da literatura como conhecemos. E que vale a pena ser lida em qualquer fase da vida adulta.
Neste tomo, Proust vai fundo nos sentimentos que nos fazem humanos: a memória, a saudade, os biscoitinhos Madeleine, os sentimentos de amor e até os sentimentos de pouca nobreza, que poderiam ser classificados como os sete pecados capitais. Suas frases de volteios e meadas, constroem um texto com infinitas digressões. Não é leitura para apressados. Mas o leitor sairá premiado de seu exercício.
Novela curta do autor de “A Montanha Mágica”, “José e Seus Irmãos”, e “Doutor Fausto”. Um texto intenso, escrito em plena Belle Époque (1912), quando se acreditava que os recursos tecnológico e a grana viva poderiam prevenir o homem de qualquer precariedade (o Titanic foi construído sob a égide desse engano) um escritor consagrado, supostamente heterossexual, sucumbe tolamente pela paixão a um jovem desconhecido. Ou seja, ninguém está seguro de nada.
Um sujeito sem raízes, andante pelo mundo, vai seguindo pela vida e aprontando. Segue pelos sertões de Goiás, fazendo das suas. Esse romance me mostrou na prática que os elementos de nossa epopeia estão ao nosso redor. O talento do autor é que vai transformá-lo em faturas universais, ou não.
Outro autor goiano que fez aumentar minha convicção de que não precisamos de elementos alienígenas para montar a nossa narrativa. A verdade do mundo está aqui, acolá e alhures. O que vai conceder grau de convencimento é o talento, o jeito de apresentar a narrativa. Veiga consegue contar histórias literalmente fantásticas, com o mínimo de elementos retirados dos cerrados minimalistas de Goiás.
Um drama espetacularmente bem montado, numa linguagem elegante. Frases bem feitas sobre a condição humana diante do poder e da guerra. Fonte de inspiração inesgotável.
Pode parecer brincadeira, mas não é. Porque nem se trata de um livro. A gente morava num rancho de folhas de palmeiras, afastado de vizinhos. Naquele tempo e lugar o normal era que ninguém soubesse ler e escrever, a não ser os patrões. Minha mãe não lia, meu pai apenas soletrava, mas tinha dificuldades em reunir as sílabas em palavras, numa espécie de gagueira pré-leitura. Às margens de um rio, meu destino, como o das demais crianças, parecia já bem definido: ser analfabeto e trabalhador rural sem terra, como meus pais. Um belo dia um divulgador do Biotônico passou por lá. Fez degustação com uma colherzinha de chá da tintura para cada um de nós. Achei gostoso. Nem parecia remédio. Meu pai não tinha dinheiro para comprar. Mas enquanto esperava o almoço, o divulgador foi lendo o Almanaque. Fiquei encantado: como podia alguém correr os olhos sobre aquelas fileiras de formiguinhas mortas em cima do papel e ir falando coisas que eu achava tão bonitas?! Para minha alegria, ao ir embora, deixou um exemplar comigo. Como prestara atenção na leitura, eu repetia em voz alta as historinhas. Sempre que havia oportunidade de encontrar alguém eu sacava logo do Almanaque e “lia” para os interlocutores. Todo mundo fingia achar que eu sabia ler. Nunca me chamaram para ler algum bilhete ou carta de parentes. A partir de então, como efeito colateral daquela experiência, adquiri e reforcei a convicção de que eu iria estudar ainda, aprender a ler de verdade e escrever histórias como aquelas. Ninguém acreditava nisso, além de mim. Não existiam escolas num raio de 40 km e nem recursos havia para que eu fosse pra perto de uma delas. Meu pai não iria deixar seu meio de vida no sertão. Mas a roda da vida foi girando, orientada por esse propósito, de tal sorte que em 1963, aos 11 anos, com a venda de minha parte numa colheita de feijão, comprei meu primeiro enxoval de estudante e entrei pro curso primário, com o firme propósito de me tornar escritor. Mesmo não sendo um livro, o Almanaque do Biotônico Fontoura foi o texto mais importante de minha vida.