É um exagero. Ninguém vai preso por cantar marchinhas de carnaval com letras politicamente incorretas. Ora, nem pilhando a Petrobrás o sol nascerá quadrado para muitos. Debochar das diferenças — dizem os debochadores — faz parte dos costumes. Ser indiferente também. Há quem não mova uma palha pelo chamado mundo melhor. São os piores seres humanos que conheço.
Vocês sabem, o que tem de gente reclamando por aí que a vida tá uma porcaria, parece um mantra. Eu, por exemplo, tenho reincidência e não sou boa companhia nem para os mansos de coração que se reúnem em retiros espirituais. Por falar em bater em retirada, certa feita, benzeram-se com o sinal da cruz e solicitaram que eu, gentilmente, me retirasse do recinto, pois estava prejudicando sobremaneira os afazeres domésticos do espírito santo. Não fiquei magoado com aquela gente, nem com o espírito, muito menos com o santo, mas lamentei profundamente ter perdido o coffee-break. A mesa posta parecia apetitosa.
Não parece, mas a sociedade melhora a cada dia, no que diz respeito à organização, noções de cidadania, aplicação de direitos e deveres dos cidadãos. De vez em quando, fica-se com aquela desagradável sensação de que as coisas estariam degringolando, que o ser humano nunca foi tão deplorável em seu caráter. Não. Não somos vinho vinagrado. Não estamos piorando.
Já teve uma fase da vida em que eu não suportava o carnaval. Hoje em dia, sinto apenas ojeriza. Significa que melhorei, entendem? Não sou a ala das baianas, mas estou evoluindo. Aproveitando então a ociosidade, achei que teria a maior irrelevância — portanto, fiquei bem animadinho — compilar as 10 marchinhas mais preconceituosas e politicamente incorretas de todos os tempos, aquelas que estão e que sempre estiveram na ponta da língua dos foliões brasileiros.
Não pretendo construir um ensaio sócio-antropológico a respeito do desimportante tema. Não sei fazê-lo, não tenho interesse, e quase ninguém vai ler, pois a maioria vai sair pra se divertir nos blocos. Só quero matar o tempo, já que não posso matar meu semelhante. De novo, a história do vinho. É carnaval, todos têm lá as suas fantasias. A minha preferida é a do desmancha-prazeres. Se a proposta não lhe agrada, aproveita toda essa onda malemolente, ponha a tanga, e saia correndo atrás de um trio elétrico, pois, atrás dele só não vai quem já morreu. E quanto a mim? Estou mais vivo que a Inês.
Cabeleira do Zezé
Olha a cabeleira do Zezé
Será que ele é?
Será que ele é?
Será que ele é bossa nova?
Será que ele é Maomé?
Parece que é transviado
Mas isso eu não sei se ele é
Corta o cabelo dele!
Nota-se que havia um claro preconceito aos homossexuais e aos homens cabeludos que, em tese, seriam adeptos à sodomia. O velho defeito humano de julgar pelas aparências. E os gays carecas: como é que eles ficavam? Ah, era dos carecas que elas gostavam mais? Entendi.
A pipa do vovô
A pipa do vovô não sobe mais
A pipa do vovô não sobe mais
Apesar de fazer muita força
O vovô foi passado pra trás!
Ele tentou mais uma empinadinha
A pipa não deu nenhuma subidinha.
Há poucos dias, durante uma comemoração de aniversário, brincaram com o meu septuagenário cunhado, dizendo que aquilo que ele carregava entre as pernas estava sendo chamado pela sua esposa de “Sistema Cantareira”, por causa do “volume residual morto”. Todo mundo na roda riu, exceto o sujeito e a esposa. Eu não riria, nem com uma arma apontada para a cabeça. Não se brinca com a velhice alheia, não se debocha da miserável condição humana de definhar fisicamente no auge da expertise intelectual. De acordo com o Estatuto do Idoso, é plenamente aceitável recomendar — sem remorsos — que um engraçadinho como esse vá se danar.
Maria Sapatão
Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João
O sapatão está na moda
O mundo aplaudiu
É um barato, é um sucesso
Dentro e fora do Brasil.
Nos quatro cantos do mundo, a homossexualidade sempre foi motivo de piada, dano ou morte. Houve uma época que a Organização Mundial da Saúde considerava a prática sexual como doença. Tinha até número no CID (Classificação Internacional de Doenças), e não era 24.
Andorinha
Mulher casada,
Que fica sozinha,
É andorinha,
É andorinha.
É andorinha,
Que fica sozinha,
Faz verão,
Andorinha, cuidado,
Homem casado,
Sozinho, é gavião
Mulher nasceu pra sofrer. Deus pesou a mão quando fez a mulher. Comentários assim são corriqueiros e retratam a dura saga do mulherio num planeta predominantemente conservador e machista. Ao longo da história, inúmeros sutiãs já foram queimados em praça pública em sinal de protesto. Haja lingerie pra tanto jugo. Se existir, de fato, uma linha de produção de almas no limbo espiritual, já vou logo avisando a Deus: quero nascer mulher nunca.
Nega maluca
Tava jogando sinuca
Uma nega maluca me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
Que o filho era meu
Toma que o filho é seu
Não senhor…
Guarda o que Deus lhe deu
Não senhor…
Em matéria de romance, as mulheres costumam pagar o pato, pois se entregam sem reservas. Os homens, não. Os homens pagam a pensão ou vão presos. Nada mais justo.
Maria Escandalosa
Maria Escandalosa desde
criança sempre deu alteração
Na escola, não dava bola
Só aprendia o que não era da lição
Depois a Maria cresceu,
juízo que é bom encolheu
E a Maria Escandalosa,
é muito prosa, é mentirosa,
mas é gostosa
Hoje ela não sabe
nada de História, de Geografia
Mas seu corpo de sereia
dá aula de anatomia
E a Maria Escandalosa,
é muito prosa, é mentirosa,
mas é gostosa
De novo, a coisificação da mulher (que neologismo horroroso!), o culto da mulher objeto, com ênfase às burras, pois essas seriam, em tese (tese masculina, obviamente), mais receptivas à sedução e ao sexo sem compromisso emocional. Não é de hoje, vigora o culto a toda beleza, charme, e sensualidade da mulher brasileira. Não vou ser hipócrita ao ponto de negar que os meus gametas também se amarrem em murunduns, mas, quando é que nos deteremos mais ao conteúdo do que à casca?
Cachaça não é água
Você pensa que cachaça é água
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão
Pode me faltar tudo na vida:
Arroz, feijão e pão
Pode me faltar manteiga
Tudo isso não faz falta não.
Ainda bem que cachaça não é água, senão, estaria custando os olhos da cara. Será que hoje vai chover?
A sogra e o jacaré
Tiraram o coração da minha sogra
Botaram o coração de um jacaré
Sabe o que aconteceu?
A velha se mandou
E o jacaré morreu!
A velha se mandou
E o jacaré morreu!
Acho tudo isso uma tremenda injustiça. Eu, por exemplo, tenho uma das melhores sogras do mundo. Ela está sempre com um sorriso estampado no rosto e jamais me apoquenta. Quando me canso da sua cara alegre, viro o porta-retratos de cabeça para baixo na estante da sala e vou beber. Que Deus a tenha.
O teu cabelo não nega
O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata, eu quero o teu amor
Tens um sabor bem do Brasil
Tens a alma cor de anil
Mulata, mulatinha, meu amor
Fui nomeado teu tenente interventor.
Essa marchinha é considerada uma das mais preconceituosas e polêmicas de todos os tempos. Na estrofe inicial, a negritude é tratada como doença contagiosa. Porém, no restante da letra, a mulata é exaltada feito deusa, uma criatura de outro mundo. Alguém aí pode me explicar esse paradoxo, por favor?
Dá nela
Esta mulher
Há muito tempo me provoca
Dá nela! Dá nela!
É perigosa
Fala mais que pata choca
Dá nela! Dá nela!
Fala, língua de trapo
Pois da tua boca
Eu não escapo.
Hoje em dia, quem der nela, além da mão secar para sempre, vai ter que se ver com a Lei Maria da Penha.