A premência de atos de coragem se manifesta em nossas vidas desde o instante do nascimento. Ambos, o bebe e sua mãe, precisam de imensa determinação e desejo, para trocar, abandonar um ambiente aquoso, seguro e acalentador pela vinda à luz na terra dos homens.
Mudar de hábitos, largar ambientes mornos por outros desconhecidos — ainda que anunciem o bônus de certa prosperidade, demanda entrega e decisão.
Mergulhar na névoa, nas ondas escuras e geladas de viagens solitárias são ações que acarretam desvendamentos, nem sempre doces de fatias do nosso psiquismo.
Coragem para se enxergar em carne-viva, sem escamoteações quaisquer. Detectar o medo lá dentro de suas caixas fechadas, as defesas algemadas na garganta e crispadas nas mãos trêmulas de dúvidas.
Ter a ousadia de convocar os diabos e demais anjos da maldade a se reunirem conosco, intimando-os a revelar seus fétidos estratagemas de demolição da alegria e paz, nossa e alheias.
Arrancar o amor, entranhado à língua, levando-o às palavras. Uma confissão de bem, um ramalhete de flores para quem nos cerca a toda hora de atenções e delicadezas.
Ter coragem, como insígnia da bravura eleita, é trocar as infinitas mortes cotidianas por sobressaltos verdes, vermelhos, lilases. Gargalhadas soltas e úmidas, prontas a invadir cenários de vento e a se refestelarem, displicentes, ao ar livre.
Coragem para ser feliz. Como sonegamos de nós essa tal felicidade, como se ela não nos fosse devida, um bem legítimo, herdado dos céus. Também poderemos estendê-la à solidariedade macia, móvel e atenta ao entorno, evoluindo em um balé glorioso, pelos arcos planetários.
Coragem carimbada nas mínimas escolhas. Levantar os olhos do celular, guardar o tablet em uma gaveta, o notebook na mesa do quarto e, então, partir para trocar dois dedos de prosa com a revoada de andorinhas que se exibem diante de nossas janelas.
São tantas e multifacetadas coragens de que carecemos nos pequenos e grandes movimentos que compõem a partitura nossa de cada dia, com suas melodias assíncronas, que nos faltam indumentárias apropriadas. Abraçar o doente, o bêbado, o paciente terminal e lhe oferecer água e mel, a ternura mais fresca da alma, introduzindo-a neste quadro de dores e discretas bênçãos.
Coragem para se dizer o que sente. Sem eufemismos, perfumes de toucador ou maquiagens pesadas por acúmulos de autoenganos. Perdoar, ou pelo menos buscar esquecer, quem nos odeia ou inveja- nossos traiçoeiros inimigos, vigilantes do alto das coxias, desde o palco em que nos apresentamos à sociedade — essa gestora de ferro. Implacável julgadora de direitos e deveres dos homens.
Um misto de coragem, humildade e tolerância consiste em receber sem discórdias a presença de noites sem lua. Aristóteles sentenciava: “A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras”.
Sem coragem, deslizamos sobre o mundo como vermes na pele de pessoas apáticas e sem rumo. Repetimos rituais de convivência sem questioná-los. Repudiamos as sementes da boa nova, em várias nuances de nossa esgarçada existência.
Anais Nin, libertária escritora, apregoava “a vida contrai-se e expande-se proporcionalmente à coragem do indivíduo”.
Na maior parte do nosso espremido tempo, pulsamos encolhidos em conchas, torres prisioneiras de castelos em cujas masmorras apodrecemos desejos, energias, prenúncios de gestos fecundos.
Shakespeare sublinhava “os covardes morrem muitas vezes antes de sua verdadeira morte; os valentes provam a morte só uma vez”.
Por fim, há algo inevitável nos pequenos movimentos das coragens nossas de cada dia. Olhar nos olhos da morte. Encará-la de perto, aceitando seu convite para enfrentá-la em mais um combate. Aqui, viver ou morrer não está em questão. Lutar é o que importa.