Sopro quente de ternura para um dia frio

Sopro quente de ternura para um dia frio

E então ele chegou de longe. Veio de um lugar onde não há contas e dívidas. Surgiu das dobras do mundo que fica para lá do fim dos parques, depois das últimas ruas asfaltadas, além das árvores mais velhas do chão.

De lá, onde um anjo nos espera na porta, onde as mulheres e os homens e as crianças e os velhos dançam sorrindo velhas canções de amor e alegria, chegou o frio que tudo transforma.

Primeiro ele veio tímido. Veio vindo, devagar e sempre como a felicidade que chega aos poucos contando suas gotas de alegrias breves. Voltou num ventinho frio varrendo as casas, bagunçando os cabelos das moças, trazendo de volta os cheiros de velhas lembranças nas mãos de novas gentes. Depois, abriu os braços de gelo e envolveu a vida soprando o vento que arrasa certezas puídas e adormece pequenas vontades.

Agora ele está aqui. Resfriando a moça linda que lê cartas de amor, o músico de cabeleira imensa que é um pai amoroso, o bom amigo que nos serve seu vinho e suas histórias, cozinha para a amiga cantora e enche a casa de amor no aroma de seu macarrão instantâneo.

É o mesmo frio que, num café elegante, aproxima o casal recente. Ela revela sua intolerância a lactose e gente chata, ele pede água com gás. O mesmo frio que recolhe as formigas ao fundo de suas cavernas de afeto e os velhos ao conforto de suas meias. É esse frio que aproxima os cachorros dos colos de seus donos, que reata romances, adia despedidas, resgata velhos casacos e antigas saudades do armário. O frio que aquece o comércio e acende sentimentos solidários, altera nossos modos e bagunça tanto sentimento guardado aqui dentro, mofando escondido.

Ah… gente amiga. Fosse o mundo mais justo, no inverno nos seria permitido vivermos mais perto uns dos outros. E à noitinha, quando a manta gélida se torna ainda mais fria, estaríamos juntos em casa, contando nossos casos e nossas coisas. Assistindo quietos à beleza invadir violenta nossa vidinha ao redor do fogo e revirar tudo sob nossos olhos de dia a dia, tão desacostumados do que não sejam os prazos para já, as contas, as disputas imbecis.

Esses olhos que ardem de ver diferente doem com o novo, dilatam as pupilas, abrem o ângulo e fecham o foco em paisagens novas que nos acendem, arrepiam e empurram para frente como os tropeções que nos trouxeram até aqui. Esses olhos que querem tanto novas visões agora pedem para ver os velhos amigos por perto.

Juntos assim, passaríamos todo o inverno, dividindo nossa comida estocada durante o ano. Compartilhando nossas leituras e histórias sob o calor da nossa amizade, animais mansos vivendo em união, esquilos consumindo suas nozes no interior de suas árvores ocas. Amigos sendo amigos de seus amigos. Até nos separarmos nos primeiros brotos da primavera seguinte, rumo a novas histórias que serão contadas em nosso encontro no próximo inverno.

Aqui faz frio, venta gelado. É esse frio que vem de longe, do lugar onde as mães encontram seus filhos que partiram ou nunca chegaram, lá onde a brisa não cessa e o perdão brota escandaloso nos canteiros, nos xaxins e nas lixeiras. Lá onde as urgências não existem e a vida segue devagar em seu longo, leve e sereno sem fim. Tudo isso agora está aqui. E aqui está fazendo frio.

Ilustração: Donald Zolan
André J. Gomes

É professor e publicitário.