Tenho um amigo jornalista que adora fazer listas de preferência: os 10 mais de todos os tempos, os 100 piores, os 1000 imperdíveis, e por aí vai. Desconfio que ele se sinta em êxtase até mesmo quando a esposa coloca em suas mãos uma reles lista de compras do supermercado. Medir, calibrar, graduar, comparar, ranquear o indivíduo dentro dos contextos mais variados da atividade humana parece uma necessidade fisiológica, como mentir, difamar e defecar na entrada ou na saída (eu insisto: tem muita gente imprestável que faz merda tanto na entrada quanto na saída, independentemente da cor e do credo).
Seduzido pelo fervoroso exercício de criar listas como quem cria confusão com a sogra ou lombrigas nos intestinos, sentei defronte o computador e descrevi um breve viés de onze personagens da literatura mundial que, ao se auto-humanizarem por meio da pena de seus autores (uma espécie de tentativa de rebaixamento moral para compreender o ser humano, eu diria), transformaram livros em ferramentas incríveis para desatar os neurônios, destravar os ignóbeis, embora, hoje em dia, estes últimos prefiram ler fotografias, perfis e comentários comezinhos nas redes sociais da internet, do que “perder tempo” manuseando um clássico da literatura. Se bem que, clássico por clássico, a burrice também o seja.
Por que onze criaturas? Porque eu quis, ora. Deixa de ser besta: não há qualquer intenção numerológica misteriosa disfarçada aí. Ficaram assim as resenhas:
A baleia de Graciliano Ramos — possivelmente, o animal mais humilde e injustiçado que se tem notícia no mundo cão da literatura brasileira. Indignada com a ingratidão dos donos, tentou se esquivar dos tiros, mas morreu com o desgosto dos chumbinhos furando o seu couro velho. Ela bem que tentou: ladrou, ladrou, mas a carruagem não parou (nem as balas). Com os olhos caninos comoventes e rasos d’água, testemunhou as vidas secarem bem ali à frente de seu focinho.
O pé de laranja lima de José Mauro de Vasconcelos — esta é outra criatura cuja esperança desabou por meio da lâmina de um machado, numa época em que ninguém falava em ecologia (aliás, creio que este vocábulo ao menos existisse naqueles tempos) e que se matava passarinho só para matar tempo, puro divertimento para adultos e crianças. Pobre árvore: vergou e acabou quebrando. Ao contrário do moleque protagonista, que teve a fantasia podada ainda na meninice, cresceu, perdeu a capacidade de sonhar e parou de ficar conversando com árvores. Isso não é mesmo uma loucura?
O peixão de Ernest Hemingway — um velho, um mar de ignorância, um peixe enorme (o maior que já se teve notícia…). Fisgado, nadou, nadou e morreu, não na praia, como o seu senil e já combalido algoz, mas, na proa de um barco bem menor do que ele. Ali, na solidão das marés, em matéria de grandeza moral, penso que rolou um empate técnico: um pescador em final de carreira sonhando ainda em fisgar o maior peixe de toda a sua vida; um peixe sonhando em degustar as sardinhas mais saborosas dos sete mares.
A barata de Franz Kafka — ao contrário de Raul Seixas — o Maluco Beleza — esta criatura jamais preferiu ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Só que querer quase nunca é poder. Tanto que, inseto rastejante que se tornara, vasculhou migalhas de aceitação no seio familiar, e só não morreu pisoteado nele porque media um metro e oitenta de altura (ou melhor, de comprimento) e pesava mais que sessenta quilos. Haja inseticida para acabar com tamanho desgosto pela vida.
Os porcos de George Orwell — os psicólogos advertem: chafurdar em lixo humano, além de ser potencialmente prejudicial à saúde mental do indivíduo, pode ser uma tarefa abjeta até mesmo para um suíno. E os porcos, animais gordos aparentemente idiotas que se contentam com pouca coisa, bem o sabem. Tanto assim que se deixaram contaminarem politicamente ao imitarem os ideais humanos menos humanistas: conquistarem o poder e nele se perpetuarem.
O capeta de Guimarães Rosa — demo, demônio, coisa-ruim, lúcifer, malino, rabudo, cramulhão, besta-fera, diacho, cão-tinhoso, satanás. No grande sertão que é a vida, o mal leva vários nomes, mas é um só e responde pelo nome de Homem. O restante, ou se trata de um desgracento fenômeno natural, ou a busca diuturna de um animal pela simples sobrevivência, únicas situações em que a violência parece aceitável, embora chocante.
Virgílio, o fantasma-guia de Dante — conduzir poetas pelo Inferno, Purgatório e Paraíso não me parece nada engraçado, mas, caritativo, piedoso, a considerar sejam os vates, no geral, criaturas dóceis, sonhadoras, ultra-sensíveis, semiabobadas (muitos críticos juram que a poesia e a pomada de minâncora servem para muita coisa e pra quase nada, ou seja, pura enganação). Só sei que, depois daquele mórbido passeio pelos subterrâneos do ser humano, qualquer poeta abandonaria a lira e passaria a se dedicar de corpo e alma à prosa. Sabe, gente, a verdade endurece a gente.
O Frankenstein de Mary Shelley — no decorrer da História da Humanidade, muitos esforços foram envidados no sentido de se melhorar, aperfeiçoar, dar um grau, recauchutar a imagem da raça humana. Tentativas neste forçado “upgrade”, muitas vezes, não só degradaram, como denegriram o próprio homem (vide o holocausto). Apurar um pé de tomate para que ele se torne mais produtivo pode até parecer uma tentativa louvável, embora a ignorância impila muitos de nós a demonizarmos os alimentos transgênicos, por exemplo. Afinal, será fundamental prover comida para uma população mundial que não para de crescer. No ritmo proliferativo em que estamos, receio que, em breve, suplantaremos os vírus e as bactérias. No que tange ao talento para roubar, já empatamos com os ratos.
Os ruminantes de José J. Veiga — aos menos avisados, caminhar sobre o lombo de bois e vacas pode parecer uma coisa impensável, deveras surreal. Aos vegetarianos, então, um sacrifício maior que traçar um filé com fritas. Definitivamente, não tem a menor graça. Não para aqueles que, por meio das palavras e das chibatadas, dominam manadas humanas inteiras, como os bispos verborrágicos e os tiranos populistas. Ruminar o ser humano, deter mandíbulas para a compreensão dos seus ardis, pode, se não brutalizar o pensador, danificá-lo nas faculdades mentais. É aquela velha máxima: pensar enlouquece.
O monstro de Stevenson — monstro por monstro, é óbvio que eu prefiro os fictícios. Senão, vejamos: não é preciso ser cientista, muito menos mentecapto, para notar os inúmeros casos de dupla personalidade que hoje emperram o Poder Legislativo. O que tem de pastor endemoninhado em bancada evangélica, por exemplo, é um inferno superlativo. Pior de tudo são as negociatas subterrâneas que promovem, por exemplo, deputados animais para presidir comissões de direitos humanos. Ora, os caras não têm o direito de nos tratar como se fossemos mais idiotas do que eles supõem. Nem o escritor mais criativo idealizaria um enredo como este, pois não tem a menor graça.
A serpente de um autor desconhecido — não se pode negar que a Bíblia seja um livro dos mais interessantes, certamente o mais lido em todos os tempos, embora muita gente prefira usá-la para decorar a sala de visitas, cometer perjúrio nos tribunais ou servir como peso para papéis. O calhamaço sagrado é leitura essencial, não obstante a sua heterogeneidade, um conflito constante de interesses, um pagar o bem fazendo o bem, um revidar o mal com mais maldade ainda. Vá entender cabeça de profeta… O conluio entre a serpente e a maçã não passava de um jogo com cartas marcadas. Com todo respeito, de acordo com o Gênesis, Deus nos aplicou um migué e acabamos enxotados do paraíso, numa época gloriosa em que nem ao menos havia advogados. Bons tempos aqueles nos Jardins do Éden.