Durante a infância e adolescência, fui tomando gosto pela leitura por conta da austeridade dos meus professores-mestres (se existe mesmo um Céu, esses sofredores de carteirinha nele adentrarão beneficiando-se de portõezinhos laterais exclusivos para Homens de bem e serão recebidos por uma banda de querubins plenamente alfabetizados); pela dedicação da minha mãe (professora de escola pública com aposentadoria miserável); pela insistência e tenência de uma tia avó que vivia a me orientar leituras, coleções literárias profundamente palatáveis como “Para gostar de ler”, da Editora Ática, que eu nem sei se existe mais.
O zelo literário com os aprendizes vale da mesma forma para a educação musical. “Imagine só o impacto no psiquismo de um indivíduo, o estrago na personalidade em formação de uma criança que, nem bem saiu das fraldas, já se vê obrigada a suportar, por sua conta e risco, certas titicas musicais, a rebolar para o divertimento de parentes embriagados, a dançar na boquinha da garrafa, a segurar o tchan (seja lá o que isso signifique), a simular o quadradinho de oito sem nem ao menos saber contar de zero a dez”.
Quem me disse tudo isso foi o Sky, enquanto matávamos, sem culpa, esfirras de carne numa lanchonete abaixo de toda e qualquer suspeita no centro da cidade. “O mundo seria menos bélico se, ao invés do hino nacional, obrigassem a meninada a cantar Imagine, do John Lennon, todos os dias pela manhã”, ele comentou, enquanto gesticulava irritado por ter lambuzado o cotovelo numa poça de Sangue de Boi que algum alcoólatra matutino derramara sobre o balcão.
Sky é roqueiro até os ossos e tem a pele apergaminhada repleta de tatuagens que remetem ao universo roqueiro, como a silhueta balofa de Bill Halley, a língua debochada dos Stones, o Submarino Amarelo dos Garotos de Liverpool e a careta de louco do Raulzito. Enquanto repetia pela enésima vez (será que Sky já padecia de Alzheimer?) sua suspeita em ter pegado aquela maldita hepatite nos anos 1970, quando se casou com uma hippie californiana, a qual tinha a cara do Syd Barrett tatuada na lomba, Sky desistiu de arrematar a quinta esfirra da manhã, que era pra não forçar o fígado gorduroso, meio deteriorado pelos vírus, pela tristeza e pelas overdoses de bourbon.
Em 1957, o então pirralho Celmar Bravio (auto-intitulado Sky) foi abduzido pelo rock ao ouvir Cauby Peixoto cantar “Rock and Roll em Copacabana”, a primeira canção de rock genuinamente brasileira, composta por um tal de Miguel Gustavo. Decidiu que era aquilo que queria ouvir e viver para o resto da sua vida, então, cresceu; desistiu de qualquer carreira acadêmica; nunca mais cortou barba e cabelo (que caíram após sua terceira sessão de quimioterapia); quase aprendeu a tocar guitarra; começou a sonhar em ter a própria banda; viajou na maionese; meteu uma mochila puída nas costas e viajou pelo mundo; teve o corpo atacado por vespas quando saltitava nu pelo campo no Festival de Woodstock; perdeu um bem encaminhado affair com Janis Joplin, atrapalhado que foi pelo tresloucado Serguei; levou uma maçã para Raul Seixas quando ele convalescia preso a uma pancreatite feroz; candidatou-se a prefeito da Sociedade Alternativa de Paulo Coelho e do Maluco Beleza; imaginou todas as pessoas vivendo suas vidas em paz, enquanto fazia vigília por Lennon na entrada do Edifício Dakota, em Nova York; parou de usar cocaína para usar colchicina, devido às lancinantes crises de gota.
Mesmo achando que o Rock Brasil dos anos 1980, de rock and roll, tinha praticamente nada; mesmo com a memória prejudicada pelas doidices da juventude e da arteriosclerose; mesmo irritado por causa da dor nos tornozelos inchados que sopitavam cristais de ácido úrico como se fossem diamantes no céu; Sky e eu pedimos uma caneta emprestada ao garçom gentil e anotamos num guardanapo respingado de perdigotos uma lista com as dez melhores canções de rock brasileiro em todos os tempos, só os clássicos, uma espécie de repertório fundamental “Para gostar de rock”, indispensável aos neófitos em música, uma trilha sonora redentora para ser ensinada às crianças, em escolas de Ensino Básico e Fundamental, ao invés simplesmente enfileirá-las numa esteira até caírem num gigantesco moedor de carnes, conforme denunciado pelo Pink Floyd no filme “The Wall”. Ficou assim a nossa lista.
Esse Tal de Rock And Roll (Rita Lee e Paulo Coelho)
Quando era mais jovem e mais doido, Paulo Coelho foi um letrista e tanto. Bem que Rita poderia levar meu sorriso no sorriso dela e — valendo-se da autoridade da antiga parceria — convencer Paulo a deixar de escrever livros para compor com ela nem que fosse uma valsa vienense.
Alegria, Alegria (Caetano Veloso)
Não fique triste, gracinha. Vai dizer que isso aqui não é rock and roll?!
Balada do Louco (Os Mutantes)
Que os homens são criaturas mutantes e pouco confiáveis, todo mundo já sabe. Vejam, por exemplo, o que aconteceu com o Roberto, tanto em termos musicais e literário-biográficos, quanto gastronômicos.
Filho Único (Erasmo Carlos
Mesmo atrapalhado pelo parceiro, Erasmo não se comportou como um filho-da-mãe, e conseguiu manter uma basal atitude roqueira. Ele não só continuou a usar jaquetas de couro e a comer picanha de origem duvidosa, como compôs canções de rock que fazem jus ao seu status de tremendão.
O Vira (Secos e Molhados)
Eu sei que é chover no molhado. Eu sei que a polêmica, além de antiga, será inócua, mas, como o rock and roll bebe sempre na fonte do escândalo, eu declaro estar convicto que a banda Kiss copiou, sim, o visual extravagante de Ney Matogrosso e sua trupe de caras-pintadas.
Até Quando Esperar (Plebe Rude)
Até quando esperar que a plebe rude brasileira aprenda a votar e a fiscalizar os seus representantes políticos? Chega de só ficar esperando a ajuda do divino Deus.
Simca Chambord (Camisa de Vênus)
O Ministério da Agricultura deveria advertir aos bananas em geral que, antes de ouvirem os sertanejos universitários, usassem Camisa de Vênus.
Índios (Legião urbana)
Nunca é tempo perdido repetir que a Legião Urbana é a principal banda de rock que o Brasil já teve.
Ideologia (Cazuza)
Abilolado pelos bafejos da morte prematura, Cazuza compôs uma canção desabafo em que praticamente entrega os pontos. Eu entendo o poeta, e com ele me solidarizo.
Metamorfose ambulante (Raul Seixas)
Ainda que avariados pela vida, melancólicos e consumidores de groselha light sem gás em balcões de lanchonetes decadentes, eu e Sky consideramos esta a melhor canção de rock já composta por um brasileiro nos últimos cinquenta anos.