À moda de Xavier de Maistre, autor de “Viagem ao Redor do meu Quarto”, Marcelo Franco faz uma declaração de amor à literatura no momento em que o hábito da leitura vai se transformando em atividade de excêntricos
Do alto das minhas pilhas de livros, trinta e nove anos de leituras atrasadas me contemplam. Os montes inexplorados — meus himalaias particulares — me fitam e eu, planejando viver mais oitenta e cinco invernos, peço calma a eles e paciência aos deuses para com este humilde pecador.
Meu motor de explosão necessita de livros como carburante, o que me levou a juntá-los desde criança. Lá pelos meus 10 ou 12 anos, confrontado com a dura realidade do mundo cruel, tragicamente deixei de lado um futuro como desbravador do Velho Oeste ou astronauta e passei a me dedicar a uma das poucas atividades em que tenho tido sucesso, a acumulação indiscriminada de livros (isso depois de brevemente também ter considerado tornar-me poeta tuberculoso para viver cercado de belas mulheres sempre dispostas a atender aos meus desejos de moribundo, pois que compungidas com a minha situação de artista incompreendido e privado de leituras por ter colocado os livros no prego). Aos 20 anos, a coisa já era patológica (escreveu Paul Nizan: “Eu tinha vinte anos. Não me venham dizer que é a mais bela idade da vida”). Por ter 20 anos, porém, em algum momento os livros disputaram espaço com os líquidos olhos verdes de Patrícia, mas o excesso de leituras desordenadas me deixara ciente de que eles viriam, causariam os estragos costumeiros e inescapáveis dos líquidos olhos verdes e iriam embora — portanto, a ordem natural das coisas seguiu o seu curso próprio: os olhos verdes se esfumaram, os livros permanecerem e depois houve outras Patrícias. De qualquer modo, tudo ficou ainda mais fácil quando me convenci de que, naquela trágica idade de 20 anos, já tinha os 39 que só alcancei efetivamente neste ano (e agora, supostamente com 39, sei que tenho na verdade 54 anos).
Creio modestamente que tenho sido bem-sucedido nesta faina — síndrome de Diógenes literária — de acumulação: diariamente verifico as novidades e faço as minhas compras. Compro, logo existo, e cada livro que há no mundo é uma espécie de baleia branca pessoal que perseguirei até o fim dos meus dias — tratem-me por Ishmael. E vocês sabem: se o trabalho é a perdição das classes bebedoras, a internet é a nêmesis das finanças das classes ledoras — compro livros, novos e usados, dos mais estranhos países e nas mais extravagantes línguas (li em algum site na internet que há até uma palavra japonesa para o ato de empilhar livros ainda não lidos, “tsundoku”. Não sei se procede, mas, se non è vero, è ben trovato). Em suma, compro livros como um hipocondríaco compra remédios. Não exagero, pois falo ex cathedra: sendo eu mesmo hipocondríaco, adquiro livros com um furor que só igualo quando me automedico. Meu ideal, confesso, seria uma livraria ao lado de uma farmácia para que eu pudesse checar as mais recentes publicações da Companhia das Letras e em seguida conferir os lançamentos da Aché e da Pfizer (fazendo crescer, inclusive, a minha lista de leituras com bulas de remédios, sempre instrutivas — sabem vocês que o uso de medicamento “por via de administração não-recomendada gera a não-obtenção do efeito desejado”?). Mas tudo isso é digressão: comprados patologicamente ou não, os livros aí estão e é preciso lê-los — ou empilhá-los. (Se os comedidos leitores por acaso se perguntam como alguém se converte em bibliomaníaco ou bibliólatra, respondo: por azar, é claro. Vejam o meu caso: não posso afirmar se tantos livros me desasnaram, mas com certeza sei que me levaram à bancarrota. Mas que fique bem claro: os livros são o meu refúgio e não uma fuga da vida, pois que, tal como aquele portuga famoso, vivi, estudei, amei e até cri.)
Neste mundo moderno, contudo, se é certo que a praça é do povo e o céu é do condor, os cadernos de cultura dos jornais são dos cinéfilos e dos aficionados aos quadrinhos. A leitura vai se transformando em atividade de excêntricos. Mas, dito isso, ou apesar disso, espanto-me: há livros — e há leitores! O mundo editorial ainda gira. Sim, caros e panglossianos leitores: eppur si muove. As editoras seguem publicando seus livros e as livrarias vivem atulhadas (com todos se amontoando, nas ditas megastores, nos três únicos banquinhos colocados à disposição dos distintos fregueses, que em tempos de outrora sempre tinham razão — mais où sont les neiges d’antan?). Tudo isso, claro, para desgosto dos jornalistas culturais que pretendem explicar as engrenagens do mundo com o último filme argentino ou com a mais recente coletânea de algum quadrinista (existe essa palavra?) do Cazaquistão ou de Chatne.
O problema é que toda essa turma que lota as livrarias às vezes parece frequentá-las apenas para comprar revistas ou tomar despreocupadamente os escassos assentos, o que me leva a crer que caminhamos a passos largos para o inevitável dia em que alguém nos dirá, como Henry Morton Stanley a David Livingstone e com indisfarçável estranheza, “Um leitor, I presume”. Mas por ora, como esse dia apocalíptico ainda não se nos apresentou (gostaram do uso dos pronomes, acacianos leitores?), podemos ainda nos dedicar a esta atividade prazerosa e que tanta irritação causa aos chatos: acumular livros para leitura enquanto a indesejada das gentes não chega. E em verdade vos digo: coletando dados para este artigo, posso afirmar (estupefato, registro), com base nas minhas inspeções empíricas, que ainda não somos um deserto de homens e de ideias (e se houver a mínima possibilidade de viramos um deserto de mulheres, a opção viável será o suicídio). Pois você se reconhece aqui, pródigo leitor? Sim, você aí, com livros amontoados pela casa, parentes irritados com a falta de espaço, rombo nas finanças por causa de tantos volumes comprados, doenças respiratórias causadas pelo acúmulo de poeira nos livros e tiques nervosos em razão do excesso de informações inúteis. Você, que há não muito tempo seria louvado pela cultura, mas que hoje é apenas considerado obsessivo-compulsivo e faz tratamento psiquiátrico. Você, o incompreendido.
Pois leio. Lemos. À moda de Xavier de Maistre, olho as minhas cambaleantes estantes e vejo, por exemplo, muitos, muitos livros sobre guerra. Faço parte daquele time que, mesmo sendo incapaz de decorar os nomes dos donatários das capitanias hereditárias, sabe dizer a ordem cronológica das conquistas militares dos Aliados depois do Dia D. Aliás, pergunto-me: por que nós homens somos visceralmente ligados à Segunda Guerra? Bem, tenho muitas teorias a respeito, confusas e contraditórias, mas as deixarei para outro momento, pois o fato é que a Segunda Guerra é uma história, teorias complexas à parte, fascinante por conta dos seus muitos momentos de heroísmo e canalhice, o que é uma resposta satisfatória ao problema posto (q.e.d, se me permitem). Percebam sua magnitude: homens brilhantes como Churchill, Roosevelt, De Gaulle, Stálin e Hitler, todos com sua húbris (o brilhantismo não exclui a canalhice, é evidente). Generais da estirpe de Patton e Rommel. Resistência, como no gueto de Varsóvia e nos últimos dias da ocupação alemã em Paris. A orgulhosa França batida e vendo a ignomínia dos franceses que colaboraram com os nazistas, mas também sabendo honrar aqueles que resistiram, muitas vezes apenas com pequenos atos cotidianos (não percam, francófilos leitores, o discurso — está no YouTube — de André Malraux recebendo o corpo de um dos líderes da Resistência no Panthéon: “Entre ici, Jean Moulin, avec ton terrible cortège. Avec ceux qui sont morts dans les caves sans avoir parlé, comme toi; et même, ce qui est peut-être plus atroce, en ayant parlé; avec tous les rayés et tous les tondus des camps de concentration, avec le dernier corps trébuchant des affreuses files de Nuit et Brouillard, enfin tombé sous les crosses; avec les huit mille françaises qui ne sont pas revenues des bagnes, avec la dernière femme morte à Ravensbrück pour avoir donné asile à l’un des nôtres. Entre, avec le peuple né de l’ombre et disparu avec elle — nos frères dans l’ordre de la nuit…”).
Como devem ter percebido os meus nietzschianos leitores, tudo muito humano, demasiado humano. Mas houve mais, muito mais: Anne Frank no seu esconderijo, durante anos, em Amsterdã. Von Choltitz, o general alemão que desobedeceu à ordem de Hitler para destruir Paris. Pessoas que deram fuga aos judeus; judeus vivendo em florestas, formando comunidades clandestinas. Londres resistindo heroicamente durante meses sob bombardeios diários. Sim, foi qualquer coisa de grandioso, principalmente se tudo é comparado às nossas medíocres vidinhas. E Churchill, anglófilos leitores, quase vencido, sofrendo as pressões do próprio gabinete para aceitar a dominação da Europa por Hitler em troca da sobrevivência da Grã-Bretanha, mas ainda assim tentando convencer — e convenceu — os britânicos e o mundo de que deveriam lutar e que, se perdessem, teriam lutado por uma boa causa, teriam defendido a civilização contra a barbárie. Impossível não se emocionar com os seus discursos (que o ajudaram a ganhar o Nobel de Literatura): “Eu diria ao Parlamento, como disse para aqueles que se juntaram a este governo: nada tenho a oferecer exceto sangue, trabalho, lágrimas e suor”. Ou: “Mas, se nós falharmos, o mundo inteiro — inclusive os Estados Unidos, inclusive todos os que conhecemos e com quem nos importamos — irá afundar no abismo de uma nova era de trevas, tornada mais sinistra e talvez mais prolongada pelas luzes da ciência pervertida. Vamos, portanto, nos unir em torno de nossos deveres. E saber que, se o Império Britânico durar ainda mil anos, os homens ainda dirão: ‘Este foi o seu melhor momento’”. (Tenho certeza, belicosos leitores, de que fui soldado britânico ou maquisard em outra vida.) Em resumo: a Segunda Guerra é como um grande livro (já que estamos a falar de livros), o melhor e o pior do ser humano estão nela.
Mas me perdi. Perco-me sempre, é o meu fado. Volto às pilhas, que muitas vezes me desesperam. Como escrevi, os livros sobre guerras são muitos, e agora os montes aumentam ainda mais com o centenário da Primeira Guerra. Mas dobro à direita em um monte que tem no topo “O Levante de 44”, de Norman Davies (Record), e posso agora dizer que vejo uma cordilheira de ficção — antiga, porém. Realmente, a cada ano aparecem supostos novos fenômenos da literatura incensados pelos resenhistas, geralmente autores jovens e estreantes e também geralmente de parcos talentos. Estimulados por essa crítica sabuja, os leitores reagem como o cão de Pavlov: babam. Leio-os e me pergunto: agora é regra causar bocejos nos leitores? Não sei se todos os novos escritores cursaram as ditas oficinas de escrita, mas o fato é que seus textos são muito semelhantes, quase intercambiáveis entre si, o que não os impede de assim mesmo sempre ganhar resenhas favoráveis. E não é preconceito contra autores jovens: Jonathan Safran Foer, por exemplo, publicou um livro notável antes de completar 30 anos, “Extremamente Alto & Incrivelmente Perto” (Rocco, 2006). Quiçá perguntem os meus leitores, que sabem a importância de ser prudente e talvez estejam agastados com minha intolerância a tanta sabujice, se quero impor minha opinião ao mundo. Sim, quero, do contrário não a publicaria, mas com certeza eu não gostaria de debater sobre isso: detesto toda espécie de debates, são sempre vulgares e, o que é pior, muitas vezes convincentes, já o disse minha tia Bracknell. De qualquer maneira, ressalvo que não sou crítico de literatura e que, como escrevi anteriormente em outro artigo, classifico os livros de acordo com minhas preferências estéticas nas categorias “Não Entendi”, “Gostei”, “Não Gostei” e “Não Sei Se Gostei”. Pois muitos dos livros dos novos ficcionistas, apesar de que não achey nelles cousa algûa escandalosa nem contrária â fe & bôs costumes, foram por mim classificados em “Não Gostei”, subcategoria “Definitivamente Ruim”, ou em outra categoria, “Suspeito Que Não Vou Ler”. (Dizem que alguns desses escritores são fortes candidatos ao Nobel — credo quia absurdum.)
A ficção de qualidade estaria mesmo cumprindo a profecia de morte que lhe fizeram tantas vezes? Já soou realmente o sempre anunciado dobre fúnebre do romance? Não sei, caras cassandras, mas me ocorreu que temos tido melhores relançamentos que primeiras edições. Por exemplo, Faulkner, o grande Faulkner, cuja obra vem sendo relançada aos poucos no Brasil e que vai se firmando, na minha lista de preferências, como o maior escritor do século 20 (Proust é, por assim dizer, um escritor do século 19). A Cosac Naify andou mesmo prometendo uma nova tradução de “Absalão, Absalão”, para mim o seu melhor livro — uma escolha difícil —, mas, até o momento em que alinhavo estas mal traçadas, neca de publicá-la. Há ainda as novas traduções de clássicos; vejo vacilante sob o peso de muitos outros livros o novo (?) “Ulysses”, marco literário canônico de James Joyce que ganhou, em 2012, a terceira grande tradução no Brasil, agora de Caetano W. Galindo, depois das anteriores e competentíssimas versões de Antônio Houaiss e Bernardina da Silveira Pinheiro. Foi publicado em conjunto pela Penguin e pela Companhia das Letras, parceria notável surgida há algum tempo, e é imperdível mesmo para quem já tem as outras versões. E por que cargas d’água alguém teria três traduções do mesmo livro? Ora, realmente não sei bem, mas, para de algum modo explicar isso, digamos que insondáveis são os caminhos do Senhor. Há quem toque berrante como hobby, há quem tenha aquários e se divirta alimentando peixes, existe até quem gaste os tubos para montar verdadeiras boates nos seus carros. Já eu tenho as três traduções brasileiras de “Ulysses” e uma espanhola, além do texto original em inglês. Meu temperamental criado-mudo, portanto, prefere os clássicos — e ainda exige que eu me aproxime deles de joelhos.
Já os livros de poesia, empilho-os separadamente para rápido acesso, pois é preciso às vezes um refrigério, até porque janeiro, e não abril, é o mais cruel dos meses, e portanto deve-se dar rédeas à imaginação para que se possa superá-lo incólume. O negócio é o seguinte: o camarada se cansa do ramerrão das vistas da planície da prosa em excesso e resolve espairecer. Há suprimentos para a tarefa: tanta, tanta boa poesia para quem quiser tomar novos ares em píncaros mais altos (ando lendo poesia goiana, daí o uso de “píncaros”), pois não é possível viver como um Esteves sem metafísica. Walt Whitman, Dante, Baudelaire, Drummond: minhas pilhas são cosmopolitas. Já àquele que não gosta de poesia, eu e Rilke apenas dizemos: precisas mudar de vida.
Tenho andado fascinado com relatos de viagem, talvez o tema literário mais em ascensão do momento (ao lado do sado-masô soft, é claro, e dos livros em que filósofos são usados para ajudar os atrapalhados leitores nas mais diversas atividades, tipo “Cozinhando com Sêneca” ou “Aprendendo a Vender com Heidegger”). Nos países de língua inglesa é uma tradição respeitada, pois histórias de viagem têm um apelo imediato para nós, é certo, já que estamos sempre palmilhando vagamente — ou planejando palmilhar — uma estrada pedregosa de Minas. Leio esses relatos com a avidez de quem não conseguirá fazer todas as viagens que planeja. Mas, sobretudo, leio-os porque é preciso confirmar a existência de Isfahan — realmente existe ou esse nome apenas surge inesperado dos entulhos acumulados das minhas leituras da adolescência? E existem também nenúfares, samovares e caravançarais, palavras que me perseguem dos mesmos debris de leituras absurdas e lembranças improváveis? Onde, afinal, encontro cimitarras e seljúcidas? Cheio de dúvidas desse tipo, eu e meu criado-mudo constatamos felizes que tem surgido bom material nessa área: há alguns Montes Roraima de narrativas de viagem no meu quarto (para quem quer se iniciar nesse rito, sugiro Paul Theroux, Willian Dalrymple, Jan Morris e Patrick Leigh Fermor, que são os autores que mais aparecem nas minhas cordilheiras, mas mesmo gente do tipo de Henry James e Graham Greene escreveu sobre viagens). Evito apenas aqueles livros que seguem uma onda que me desagrada: todos agora voltaram a viajar para o Oriente em busca de um Graal que a corrompida civilização ocidental supostamente não mais poderia fornecer, fato que me causa estranheza e pena: é preciso avisar a essa turma que está procurando por Katmandu com cinquenta anos de atraso. Confesso que hippies tardios e o Oriente, às vezes, ou quase sempre, me exasperam (“O Oriente”, disse-o algum sábio, não sei se Kant ou Cantiflas, “é o ópio do ocidental decadente e desocupado”). Meu cosmopolitismo de pobre anseia por Paris, Madri, Londres e Roma.
Não nos esqueçamos dos livros de história, pois não queremos repetir o passado por não conseguir recordá-lo, não é mesmo? Tenho afeição especial por eles. Na velha casa de minha família no Setor Sul, depois de ter assaltado a sabedoria e o prazer nos livros que eram mantidos num cômodo nos fundos do lote (muitos livros acumulados por meus pais, ambos leitores infatigáveis), foi aos livros de história que voltei para as primeiras releituras. Gostava tanto deles que até copiava trechos enormes, criando um hábito de leitura que, não sabia à época, ira se transformar em razão de vida. Ai de mim.
Pois vejo com o canto dos olhos, com medo de encarar tantas promessas de leituras ainda não cumpridas, pilhas que me exigirão anos de treino de presbiopia. Sobre uma pilha, “As Famílias que Construíram Roma: um Guia Histórico e Cultural”, de Anthony Majanlahti (Seoman). Estou apenas iniciando sua leitura, mas ele já evocou lembranças da leitura antiga de “Amor a Roma”, do grande Afonso Arinos de Melo Franco, e dos desvãos da minha memória surgem sombras de histórias dos Chigi, Collona, Della Rovere, Borghese e de outras famílias romanas tradicionais, e daí me imagino com Lucrécia Bórgia envenenando com cantarela algum Orsini conspirador — afinal, civis Romanum sum. Leitura obrigatória, como percebem. (Para os que apreciam: saiu em DVD a série “Os Bórgias”, que tem Jeremy Irons tentando interpretar o Papa Bórgia, Alexandre VI, mas conseguindo ser apenas Jeremy Irons.) Meus Apalaches também me mostram que me interesso pela história da gripe espanhola, de cidades europeias, da CIA, da queda de Roma, das Cruzadas, da vida íntima das pessoas na Idade Média and so on… Tristes trópicos, triste vida de curiosidades difusas.
Sigo adiante, pois ler é preciso, viver não é preciso. Outra olhada envergonhada de relance nas pilhas e percebo que me dedico seriamente à leitura de biografias, memórias, diários e coletâneas de cartas, pois, como o degas aqui vive atarefado com picuinhas processuais, preso eternamente numa espécie de Ilha das Abelhas Diligentes (ao Google, desinformados leitores), o jeito é me desoprimir vivendo vidas alheias. Uma espécie de transubstanciação de minha vida apagada em outra, mais aventurosa e recheada de eventos feéricos, para usar um adjetivo (de modo errado, imagino) que há anos não ouço, já que a vida é sonho, e os sonhos, sonhos são. Portanto, se quiserem me obsequiar, deem-me biografias, pois leio até as dos tipos mais obscuros — este vosso criado agradece. Sei que não estou sozinho: críticos de respeito, como Harold Bloom, Wilson Martins e Oprah também apreciam biografias e memórias. Pois ando, como sempre, às voltas com releituras de Pedro Nava, que é presença obrigatória e eterna nas minhas pilhas e que a Companhia das Letras, de novo ela, está republicando, agora com estudos que esclarecem sua escrita, pois seus livros são uma espécie de grande museu — um Louvre — que pede repetidas visitas. O velho Nava é minha obsessão: fecho as páginas dos seus livros e eles continuam sussurrando nos meus ouvidos. Uma sinfonia mineira e carioca, alguém já disse, ou uma sinfonia brasileira, melhor dizendo, uma vez que as memórias de Nava são as memórias de todos nós (com eles, minhas madeleines, volto à perdida Palmeiras de Goiás de minha infância, repleta de tias e tios safra entre-guerras). Quem não as conhece que trate logo de as ler e se diluir nesse cante hondo lancinante sobre a vida e a morte (Nava, ao contrário de outros memorialistas, não minimiza o seu lado escuro, pois que o tem, assim como vocês e eu – eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil).
Por falta de romantismo na vida cotidiana, há nas pilhas — vacilantes como o próprio tema — dois livros, por assim dizer, de “filosofia do amor”: “Amor: uma História”, de Simon Ray (Zahar), e “Em Defesa do Amor”, de Cristina Nehring (BestSeller), este último, na verdade, mais uma análise literária que filosófica, centrada nos amores e na correspondência de artistas, principalmente escritores e literatos. Se Eros é uma criança travessa e o amor, como na ópera, “est un enfant de Boheme/Il n’a jamais, jamais connu de loi”, um pouco de literatura sobre o tema talvez ajude os desafortunados, e as conclusões desses dois livros com certeza o farão, pois, para dizer pouco, são no mínimo surpreendentes.
Tenho algumas estantes de livros sobre livros, é uma das minhas manias (não se apressem a explicar isso, freudianos leitores: também tenho estantes com guias de viagem para lugares aos quais jamais irei e outras com livros de amadores — à falta de palavra melhor —, tipo coletâneas de poesia de funcionários públicos, contos de velhos advogados do interior, coisas assim. Quanto mais amadora a edição e quantos mais erros de português houver, mais saborosa é a leitura). Terei tempo? Dizem que Winston Churchill lia um livro por dia inclusive enquanto tentava salvar o mundo do nazismo; já eu estou distante dessa marca e apenas tento salvar o mundo de mim mesmo. Receio então que não terei tempo: os próprios livros de Churchill sobre a Segunda Guerra estão na minha pilha desde 1993 (e estão sendo lidos!).
Em todas as pilhas e em todos os cantos do quarto e da minha vida, Freud. A Companhia das Letras segue publicando a obra completa do austríaco, agora traduzida, pela primeira vez no Brasil, diretamente do alemão, e a nova tradução mostra que Freud, além de ser o pai da psicanálise, era também um magnífico escritor (o polêmico Harold Bloom colocou-o na sua lista de cem escritores geniais). Não sei se concordarão comigo os recalcados leitores, pois eu aprecio sobremaneira o tema: que me perdoem os muito sãos, mas psicanálise é fundamental — se não no divã, ao menos lendo livros sobre o assunto (apesar de que, Faulkner já o notara, Melville a Moby Dick não leram Freud).
Percebo que há livros de difícil classificação, como, da Editora Senac, “Os Hotéis Literários: Viagem ao Redor da Terra”, de Nathalie H. de Saint Phalle (que nome é esse, minha filha?). A autora conta histórias de livros e escritores que se passam em hotéis do mundo todo. É um guia de hotéis ou uma espécie de crônica literária? Leio-o com raiva porque a jornalista, que imagino francesa, furtou-me uma de minhas melhores ideias para livros que nunca escreverei, mas também com nostalgia que me faz lembrar os hotéis que já conheci, como aquele, numa das vilas de Cinque Terre, onde não encontrei a Ava Gardner que sofregamente buscava, e ainda com apreensão por causa do pouco tempo que me resta para conhecer outros, talvez aquele hotelzinho perdido nas areias quentes do Egito e no qual poderia topar com Anne Baxter enganando o general Rommel — hotel, como sabem os meus saarianos leitores, no qual se passa o filme “Cinco Covas no Egito”, o que me permite fazer uma confissão: sempre ouvia, desde novo, meu pai elogiar esse filme, o que me levou a passar anos a procurá-lo; assim, quando o consegui, senti-me como se tivesse cumprido uma etapa importante do meu crescimento. (Ora, vejam isso, eu havia criticado os cinéfilos e agora mencionei filmes. Não tem importância: é preciso sentir tudo de todas as maneiras e ser sincero contradizendo-se a cada minuto.)
Evidentemente, há livros que só empilho sob pés mancos de mesas. Se Lya Luft, Paulo Coelho ou Ariano Suassuna publicam novos livros, uso-os. Imagino que sim, já que são dados à bibliorreia. Na verdade, alguns deles, como os de Lya Luft, a mais pachecal (o ne plus ultra da platitude tomada por verdade profunda), podem ser lidos com fins desopilantes, apesar da dificuldade com os seus patoás. Com certeza sabem os meus bíblicos leitores que as pragas do Egito foram dez: águas corrompidas, rãs, piolhos, moscas, gafanhotos, trevas, instalações de artistas contemporâneos, antropólogos de esquerda, sociólogos acadêmicos e escritores que escrevem e nada dizem. Há quem diga que qualquer leitura seria boa, pois supostamente levaria a livros de melhor qualidade — bem, eu jamais vi alguém dizer “Vou deixar este Paulo Coelho um pouquinho de lado e dar uma olhada na obra completa de Shakespeare”. Mas quem sou eu para discutir com pedagogos com mestrado e doutorado?
Encerro. E, depois de uma volta completa ao redor dessas pilhas para mim tão sagradas, sei, relendo o que escrevi, que com certeza canso os leitores. Mas, o que é mais grave, lembro-me ainda do Eclesiastes: “No acúmulo de sabedoria, acumula-se tristeza, e quem aumenta a ciência, aumenta a dor”.
Entretanto, penelopianos leitores, talvez vocês se perguntem: por que tanta leitura? Pois insisto porque creio com convicção sempre renovada que vivemos, todos nós, nossas vidas cheias de som e fúria — significando nada — eternamente à deriva e esperando um Godot que nunca chegará, mas também acredito que, de algum modo, podemos ter a literatura como uma forma de explicar o mundo. Se não é exatamente um consolo — ler muitas vezes machuca —, a literatura talvez seja o mais eficaz instrumento de um adulto para sobreviver relativamente são neste imenso cenário de dementes que é a saga humana (e propósito das citações, também creio que Montaigne e Shakespeare disseram tudo o que era necessário, e o pouco que faltou foi dito por Proust, Joyce e Faulkner). Por isso não capitulo — je ne capitule pas, caros rinocerontes (ao Google, leitores!).
É isso. Longa é a arte e curta é a vida, e talvez por isso o patrício pergunte: e o tempo para ler tudo? Pois é, atarefado leitor, tempus fugit. Matamos o tempo e o tempo nos mata. E também cotidie morimur e nihil morte certius, latinistas leitores. Bem, não sei, a leitura toma tempo e, como se sabe, thinking is a dizzy business. Cada um é cada um, deve ter sido sabiamente dito por algum técnico de futebol, mas para economia de tempo há atividades que podem ser cortadas da vida sem grandes prejuízos. Lembro algumas, mas com certeza existem outras: 1) berrar do alto de prédios depois do futebol (“Chooooora, Parmêra!”); 2) registrar no facebook a cronologia exata dos atos de higiene pessoal e o andamento da vida amorosa; 3) participar de micaretas — em matéria de fuzuê liberado, um carnaval oficial por ano basta (até porque seria muito difícil suportar duas mortes anuais da camélia); 4) fazer exercícios: como li em algum lugar, é melhor ficar com a parte de “mens sana” naquela história de “mens sana in corpore qualquer coisa” — leão não faz exercício, dizia San Tiago Dantas (estou sempre entregando a idade com esse tipo de comentário, mas não adianta fugir disso, como pessoalmente me recomendou o Autregésilo). Sim, esforcemo-nos — yes, we can. (Mas decidam-se rapidamente, prufrockianos leitores: em um minuto apenas há tempo para decisões e revisões que um minuto revoga.)
Encontrado o tempo, persistam: é que os bárbaros chegam hoje. Prego a concórdia e sou pela paz entre os homens e mulheres de boa vontade, mas com essa turma de cinéfilos e leitores de quadrinhos só Guantánamo resolve, pois já vejo as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura, famintas, histéricas e nuas. Quando os vândalos se aproximarem com algum filme iraniano cult, revidaremos declamando a longuíssima “Canção de Mim Mesmo” de Walt Whitman. Se os visigodos inimigos da palavra escrita insistirem em citar a estultícia das pretensas tiradas filosóficas de personagens de histórias em quadrinhos, leremos em voz alta o não menos longo monólogo final de “Ulysses”. Bradaremos contra os hunos e seus obscuros festivais de cinema: ¡no pasarán! Sim, unamo-nos: o que nos resta é proteger estes espaços para os quais podemos fugir do cotidiano caótico e massacrante, os nossos Yoknapatawphas, santuários onde pode prevalecer sem contestação qualquer devaneio literário, e as nossas Pasárgadas, onde somos amigos do rei e podemos decretar sem contestação a superioridade da literatura. Aux armes, citoyens! Andrada! Colombo! Mehr Licht!
Pintura: John Singer Sargent