O jornalista Euler de França Belém, ao elaborar uma lista com sugestões de livros, defendeu a tese de que bons livros são, na verdade, “diamantes para o cérebro”. Acredito que essa premissa — com a qual concordo inteiramente — possa ser estendida também para o cinema. Talvez com muito mais razão para o cinema, forma de expressão que, posto que goze de amplo apelo popular, tem perdido progressivamente a pretensão do “fazer artístico”, a privilegiar-se a lógica da produção em escala industrial de blockbusters. Com isso, cada vez mais temos cinéfilos autodeclarados que desprezam a leitura da Pauline Kael (às vezes, nunca ouviram falar dela), mas não hesitam em cultuar bobagens infantis. O resultado é o declínio da inteligência do público que, perdido no meio de tantas referências esparsas, ou simplesmente influenciado por críticos de cinema de pouca credibilidade intelectual, passa a absolver a pobreza narrativa fílmica, entretido com efeitos especiais mirabolantes, muitos dos quais a causar uma sutil, porém agressiva, paralisia cerebral.
Essa introdução serve para justificar a presente lista. Trata-se de uma tentativa de orientar o leitor da Bula — por certo, alguém que preza pelo que há de mais refinado no campo da cultura — no mar de referências cinematográficas. Como sói acontecer, a lista é estritamente pessoal: ela elenca obras que agradam ao meu gosto estético na arte cinematográfica. Basta pensar que, tivesse outro autor assinado a lista, as referências decerto mudariam (talvez ele viesse a público afirmar que “Curtindo a Vida Adoidado”, do diretor John Hughes, é superior aos filmes do Godard, opinião que eu nunca endossaria). A lista também é limitada: são apenas 15 filmes, o que incontornavelmente deixará de fora muitas obras relevantes (inclusive procurei misturar obras canônicas, sempre referidas, a outras mais atuais, como sugestões incomuns ao leitor da Bula). O que importa é que são quinze bons filmes que, da mesma maneira que os bons livros, podem muito bem servir como generosos diamantes para o cérebro.
O mais belo filme de Natal de todos os tempos. Essa é uma definição perfeita para “A Felicidade Não se Compra”. Mas o filme de Capra vai além. Filmado em 1946, é um retrato do apogeu estilístico da “Era de Ouro” de Hollywood, quando os filmes eram feitos para enaltecer as qualidades morais do indivíduo, além de elevar a autoestima da população. A fábula da cidade de Bedford Falls, do homem que é visitado por um anjo ao bater as portas do suicídio, é um daqueles casos raros em que um filme é capaz de salvar vidas.
Filme que assinala a maturidade artística de um dos maiores cineastas do século 20, o japonês Yasujiro Ozu. Com sua câmera parada, Ozu tinha a pretensão de captar a vida em sua fluidez natural. Nascia a estética do anticinema, oposição à grandiloquência hollywoodiana. O resultado é um filme lento (talvez o mais lento da história), a contar a saga do casal de idosos que viaja a Tóquio para rever seus filhos. E é exatamente esse compromisso inarredável com os detalhes que torna tão importante resgatar o cinema de Ozu: como estamos a viver na era da modernidade líquida (BAUMAN), no bojo da qual a velocidade fragiliza os laços humanos, a lentidão narrativa de “Era Uma Vez em Tóquio” contraria o porvir, a configurar-se num invulgar ato de resistência do artista (que enfrenta as pressões estéticas do seu tempo) e do público (que assim demonstra seu amor à potencialidade narrativa do cinema).
O problema com trilogias fílmicas é o risco que o diretor corre de não conseguir sustentar um padrão elevado de qualidade em todas as películas (vide o exemplo de Francis Ford Coppola, que, após dirigir com brilhantismo as duas primeiras partes de “O Poderoso Chefão”, falhou miseravelmente ao encerrar a saga da família Corleone). O polonês Krzysztof Kieslowski, felizmente, evitou esse risco. Sua ambiciosa Trilogia das Cores já tinha produzido dois filmes exitosos (“A Liberdade é Azul” e “A Igualdade é Branca”) quando veio à lume “A Fraternidade é Vermelha”, de 1994. De fato, Kieslowski reservou o melhor de sua trilogia inspirada nas cores da bandeira francesa para o capítulo final. Ao narrar história do juiz aposentado que espiona seus vizinhos, o diretor posiciona a bela Valentine como epicentro da compaixão fraternal que se pode transmudar no amor contrito — o único capaz de redimir a solidão e a tristeza de toda uma vida.
Este é um caso curioso de um filme que me parece prejudicado pelo prestígio que alcançou merecidamente junto à crítica. Incensado como “o melhor filme de todos os tempos”, enriquecido com centenas de teses acerca da correta interpretação do “Rosebud”, admirado pela técnica do diretor, empregada na condução de uma narrativa complexa, muita vez falta quem diga que a história do magnata que constrói um império jornalístico e tenta ingressar na vida política é bastante atual, especialmente no Brasil, que é pródigo em formar seus “Cidadãos Kane”. A diferença é que por aqui a vida pessoal desses magnatas não costuma ser infeliz como a de Charles Foster Kane. O “Cidadão Kane” brasileiro não tem escrúpulos.
O Irã é um país muito conhecido dos brasileiros pela polêmica política externa que adota. É uma pena que se resuma a isso. A milenar cultura persa, de que o povo iraniano é herdeiro, é riquíssima. Tão rica quanto o cinema que se faz por lá. “Close-up”, filme de 1990 do diretor Abbas Kiarostami, é um exemplo primoroso disso. A história de Sabzian, um homem tão apaixonado por cinema que forja a própria identidade autoral para enganar uma família, entrelaça documentário e ficção de maneira brilhante, a permitir uma salutar reflexão quanto aos limites da impostura (na vida como na arte cinematográfica).
Outra pérola recente do cinema iraniano. Um filme de 2011 que põe o dedo na ferida das tradições familiares de um país de moral teocrática rígida. O processo de divórcio do casal Nader e Simin serve como pretexto para atualizar a discussão em torno da fragilidade dos laços humanos num mundo de instituições anacrônicas. Decisões dramáticas, em princípio de consequências unilaterais, reverberam em estereotipagens consagradas (o papel da mulher na família) e na vida de terceiros, a causar o desfazimento não só da relação conjugal, mas a separação de muitos outros valores.
A história de encontros e reencontros da vida retratada com uma beleza poética indescritível. Um amor genuíno, que a guerra separou em Paris, tem a chance de acertar as contas em Casablanca (Marrocos). Rick, o insensível proprietário do bar, defronta-se com a amargura do amor perdido, que torna a assombrá-lo com a volta de Ilsa, que ele descobre casada com Victor Laszlo, o líder da resistência que planeja escapar à perseguição nazista. Estaria Rick disposto a ajudar Laszlo, mesmo que isso acarretasse a perda do amor de sua vida? É o tipo de pergunta que só pode ser respondida em “Casablanca” ao som de “As Time Goes By”.
John Ford eternizou-se em 1956 com “Rastros de Ódio”, sua obra-prima, presença constante na lista dos melhores filmes de todos os tempos. Mas o diretor dos filmes de faroeste começou a dar mostras do seu talento bem antes. Com “No Tempo das Diligências”, de 1939, Ford funda os estereótipos que permeariam boa parte das narrativas ambientadas no Velho-Oeste a partir de então: o xerife impoluto, o banqueiro cainho, o bêbado inconveniente, o anti-herói sedento de vingança, o ataque dos índios às diligências, as belas mulheres que convém proteger (e esposar). Eis aí um elenco de personagens carismáticos que, uma vez reunidos numa diligência, terão de enfrentar os perigos da travessia enquanto aprendem a difícil arte da convivência humana.
O título nacional pomposo (mas que eu adoro) ignora o quanto de humor Hawks inseriu no seu filme. Os estereótipos que “No tempo das Diligências” ajudou a fundar em 1939 apresentam-se já consolidados neste filme de 1959: o xerife Chance, seu ajudante alcoólatra Dude, o vaqueiro egoísta Colorado Ryan (que faz, quando em quando, o papel de anti-herói), a beldade Feathers. É um filme que mostra como as relações locais de poder podem subjugar a autoridade do Estado — tese figurada no grupelho, liderado pelo xerife, que tenta resistir heroicamente à invasão à delegacia comandada pelo poderoso rancheiro Nathan Burdette. A cena em que Colorado e Dude, sitiados na delegacia, principiam a cantar “My Rifle, My Pony and Me”, de Dean Martin, é tão cativante que dá vontade de pegar o violão e cantar junto!
Fortemente influenciado pelas consequências que a 2ª Guerra Mundial impôs à população italiana na década de 1940, o movimento neorrealista tem em “Ladrões de Bicicleta”, de 1948, um de seus exemplares mais bem realizados. O diretor Vittorio de Sica conduz a narrativa de maneira pungente. O desemprego assola o país arrasado pelo conflito bélico. Os homens saem à cata de trabalho, necessitados que estão em pôr comida na mesa de suas famílias. É nesse contexto pobríssimo que Ricci consegue, após muita dificuldade, um emprego. Sua função é colar cartazes nas ruas. Seu instrumento de trabalho é a bicicleta. Ricci se desfaz de toda sua parca economia. Compra uma bicicleta, mas ela é roubada. Desesperado, temente ao desemprego, Ricci parte com seu filho Bruno numa jornada incansável pelas ruas da cidade, a farejar o rastro do ladrão. Se falhar, sua pena (e a de sua família) é a miséria. “Ladrões de Bicicleta” é, sem dúvida, um dos filmes mais tristes de todos os tempos. Uma obra-prima.
O que torna “8½” tão especial é a ousadia do seu diretor. Com esse filme, Fellini desconstrói os modelos narrativos lineares do cinema. Para desenvolver a trama derredor do cineasta Guido Anselmi, atormentado por uma crise criativa que obstaculiza suas ideias, impedindo-o de conceber novos filmes, o diretor italiano optou por criar uma atmosfera onírica, que a todo o momento leva o expectador a questionar se o que vê é sonho ou realidade (ou mesmo nenhum dos dois). É um filme de difícil compreensão por parte do público que se acostumou a pensar que uma história deve ter começo, meio e fim (ainda que alguns dos elementos estejam invertidos na urdidura narrativa). Em “8½”, tudo que há são metáforas visuais fantasmáticas que se misturam a lembranças oriundas duma mente atormentada por uma tríade de fracassos: o artístico, o moral (repressão religiosa) e o amoroso (as mulheres que não soube amar).
“Drive”, do dinamarquês Nicolas Winding Refn, é um exemplo maravilhoso de como um blockbuster de ação, quando bem dirigido, pode atingir a excelência fílmica. A história do dublê de cinema que à noite trabalha como piloto de fuga, ajudando bandidos, impressiona pelas referências estéticas (fortemente inspirada nos filmes da década de 1980), pela fotografia (a cidade escura) e pelo ritmo da narrativa, que alterna lentidão e celeridade, delicadeza e violência extrema. A cena do beijo no elevador entre o motorista (o protagonista não tem nome) e Irene é de uma sensibilidade artística tão grande que vale mais que todas as comédias românticas já produzidas em Hollywood.
A exploração do mito do vampiro numa perspectiva antivampiresca. Parece contraditório? Pois é, já que o suspense “Deixa Ela Entrar”, do sueco Tomas Alfredson, consegue se apropriar da figura estereotípica do vampiro (no caso, a vampira Eli) qual uma ponte para desenvolver uma trama psicologicamente violenta sobre o bullying e a solidão pubescente. Méritos do diretor, que, para criar um clima sombrio e atemorizante, não precisou socorrer-se do “terror de açougueiro”, despejando litros de sangue e violência gratuita, prática cretina que veio a vulgarizar-se na indústria. Experimente convidar a namorada para ver o filme, alegando tratar-se de spin-off europeu de “Crepúsculo”, e surpreenda-a com um lindo tratado psicológico sobre a crueldade e a solitude humanas.
No século 16, conquistadores espanhóis partem numa expedição em busca do Eldorado. Mas a selva amazônica reserva-lhes muitos perigos além dos ataques dos nativos. O ambicioso Lope de Aguirre assume o comando e lidera o grupo numa incursão suicida em busca de ouro. Esse é o mote desta produção alemã, de 1972, de alta densidade psicológica. Seu diretor Werner Herzog prima pela abordagem da loucura, a filmar cenas lindas de uma natureza selvagem que aprofunda o isolamento e a angústia dos conquistadores, na medida em que os aproxima mais e mais da morte. Destaque para a atuação de Klaus Kinski. Sua personagem Aguirre quase não fala; toda sua demência é denunciada por uma postura corporal trôpega e um olhar insano como poucas vezes se viu no cinema. Coisa de gênio.
O cinema brasileiro contemporâneo tem rendido muita porcaria (essas comédias escrachadas, que mais parecem telenovelas globais com uma hora e meia de duração, são vergonhosas), mas muita coisa boa também (“Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho, “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho, e as duas partes de “Tropa de Elite”, de José Padilha, são ótimos exemplos de cinema nacional de qualidade). Apesar disso, faço gosto em citar “O Pagador de Promessas”, de 1962. Eis aí um filme mais lembrado pela premiação que levou (a Palma de Ouro em Cannes) que propriamente assistido. Na verdade, a película de Anselmo Duarte, que narra a jornada do Zé do Burro, o campônio que atravessa o sertão baiano a carregar a cruz redentora de sua promessa, é uma bonita representação da riqueza cultural brasileira, sem descuidar da crítica mordaz à burocracia eclesiástica que corrói a fé ao erguer muros discriminatórios e excludentes dos devotos.