Nós e nossa sublime alegria de não saber

Nós e nossa sublime alegria de não saber

— Mamãe, o que você tá fazendo?
— Tô rindo, filhota.
— Por quê?
— Não sei.

Assim, olhando a risada de sua mãe, a menina dos olhinhos de sol conheceu sem saber uma das sensações mais absolutas e definitivas da vida: com a surpresa de quem descobre que o caramujo carrega nas costas sua própria casa, que o tatu bola fica mesmo arredondado e as lesmas derretem feito monstros se chovermos uma nuvem de sal em suas costas, a menina se deu conta de que, quase sempre, nós não sabemos.

Ela não sabe por que motivo sua mãe está rindo sem saber por quê. Em seu pequeno pedaço de céu na Terra, a menina não sabe quantas horas dura o dia, quanto tempo de sol lhe resta para rolar na terra antes da noite, do banho, da janta, da cama. Ela não imagina o que significam as cotações de mercado, as altas e baixas da bolsa de valores. Não sabe a quantas andam o custo de vida, as alíquotas, os impostos, as mensalidades escolares. Ela não sabe nada, sua felicidade é completa, sem descontos e abatimentos na fonte.

Um dia, vai saber ainda menos sobre quanto durarão seus animais domésticos, suas plantas, seus amores e a bateria de seu celular. Ela não sabe, mas um dia, quando suas lembranças residirem em um monte de fotografias, mensagens antigas, lugares revisitados, objetos resgatados e imagens difusas, ela talvez se apanhe sorrindo só, como sua mãe, e também não saiba por quê.

A menina que hoje brinca com a comida e as próprias meias não sabe, mas ela sorri quando olha na claridade as partículas de poeira flutuando, brilhantes como estrelas caseiras, enquanto sua mãe passa uma vassoura na sala. Não sabe que a saudade corriqueira que tem do pai durante o dia é um sentimento que só vai aumentar com o tempo, o nariz e as orelhas de cada um. Ela não sabe que um dia vai ter saudade do que já foi, do que ainda é e até do que — quem sabe? — um dia poderá ser.

Do amor, um dia ela não vai saber mais do que todas as suas dúvidas. Da dor, ela não vai saber por que dói e, sobretudo, por que continua doendo ou quando vai parar e quando vai doer de novo. Ela ainda não sabe, mas um dia os cretinos que vegetam por aí, pendurados em preconceitos e certezas patéticas, vão jogar areia em sua torta, vão gritar “vai, gordinha!” quando a virem pedalando sua bicicleta na subida, vão elogiar o sucesso de sua dieta em sua frente e execrar sua esqualidez em suas costas. Ela vai chorar, seus velhos pais irão lhe perguntar “por quê” e ela, afundada em certezas e convicções, vai responder “não sei”.

É claro que ela não sabe, mas um dia também ela será vil e desprezível. Vai machucar, vai fazer doer. E vai saber exatamente por que o faz. Mas dessas coisas é melhor não saber muito e ela vai esquecê-las lá dentro de uma gaveta discreta de seu coração, e vai jogar a chave fora.

Um dia, daqui a tantos anos, ela vai achar linda a história de amor de seus pais. E vai odiar os amores de seu irmão. Vai conhecer de perto e de longe tanta gente que, à noite, vez ou outra vai ser difícil dormir com tantos nomes e rostos lhe assaltando a lembrança no quarto escuro.

Ela vai caminhar ao lado, atrás, à frente de tantas pessoas quase sempre sem saber. Vai receber a mão de alguém, vai dar a mão a alguém e isso vai se repetir tantas vezes que, em quase todas elas, nenhum dos lados vai saber quem deu ajuda e quem a recebeu.

Porque a menina um dia vai acordar maior, mais bela e mais velha, com tantos senões, porquês, rugas e lembranças quanto o número de formigas trabalhadoras que caminham sob seus olhinhos apertados de curiosidade e amor. Nesse dia, rodeada de cachorros, gatos e cabras e filhos, ela vai olhar o céu de manhã, respirar fundo e dizer “obrigado” baixinho.

Alguém da casa vai perguntar se ela já sabe o que terão no almoço, ela vai pensar no assunto. E assim, enquanto ainda não sabe, ela vai folhear sozinha o álbum de suas loucuras e vai se dar conta de que viver é não saber.

Mas isso será um dia, lá na frente do tempo. Hoje, aqui, a menina dos olhinhos de sol ainda não sabe, mas sua mãe espera, ainda também sem saber, um outro bebê. Em algum lugar depois das nuvens, uma criança espera para vir ao mundo, trazida àquela família que vive entre os cachorros e gatos e cabras e vacas da fazenda, no bico forte e seguro de uma cegonha prateada. Mas isso ainda ninguém sabe.

Para Emma e Malte, Lavínia e Staffan.

 

Ilustração: pintura de Joaquín Sorolla y Bastida
André J. Gomes

É professor e publicitário.