O estadista sobe ao plenário de um importante encontro de líderes mundiais com um nó na garganta. Um instante atrás, antes de deixar sua casa rumo à rodada de negociações repleta de homens e pautas que definirão a sorte de milhões de pessoas sem rosto e sem nome, ele tinha visto seu filho pequeno dormindo.
A lembrança de sua cria descansando segura, tranquila, alimentada e aquecida ocupara sua cabeça durante todo o percurso até o auditório onde a imprensa internacional se acotovela ansiosa. A mãozinha de seu herdeiro, repousada de lado sobre o travesseiro antialérgico, pesara em sua lembrança enquanto ele repassava seu discurso no carro oficial seguido por batedores e agentes do serviço secreto.
Agora ele está ali, sozinho, de pé em frente a uma multidão de norte-americanos, latinos, europeus, africanos, asiáticos, judeus e muçulmanos respirando o mesmo ar pesado de cobranças, convenções e exigências.
Ele segura as páginas com o texto de seu discurso, pigarreia e se apruma para começar a ler. Mas em seu silêncio constrangido, no fundo de seus olhos inundados de vida e lembrança, ele se pergunta se o que deve dizer ao mundo se encontra mesmo ali, digitado e impresso em meia dúzia de folhas brancas.
Enquanto o mundo espera por suas palavras, ele aguarda intimamente que o mundo espere menos. E que as paixões avassaladoras apareçam de manhã nas sacolas dos carteiros, sobre os tapetes da porta, nas caixas de entrada dos e-mails. Espera que a saudade dos velhos amores extintos renasça em novos encontros, com novas gentes, em outros cenários.
Em seu instante de absoluto desprendimento, ele se dá conta do quanto são ridículos os interesses de cada maldito representante que ali está. E percebe o quanto seu mundo anda carente de afeto, o quanto precisa não de mais investimentos para que os ricos continuem ricos e os pobres continuem pobres, mas de pequenos milagres que desencadeiem grandes loucuras. Pequenos milagres capazes de enormes mudanças.
Seus olhos se fecham involuntários, e ele pede em pensamento que não esteja mais ali. E que em cada casa do planeta brote uma nascente de água poderosa capaz de curar toda e qualquer doença. Porque só assim a saúde não será mais um mercado cruel, liderado por gente vil decidindo as mazelas que nos acometerão, ocupados sobretudo com quanto dinheiro irão ganhar com isso.
Pede que os sete bilhões de seres humanos e os outros inúmeros espécimes vivos sobre a Terra acordem numa terça-feira sem importância e descubram que o inimigo tornou-se amigo. Que o credor desistiu de cobrar a dívida e que todo malfeitor se deu conta do quanto foi patético ao fazer ou desejar o mal ao outro, em qualquer instância, em todas as escalas.
Que o mundo seja de repente invadido por bons sentimentos, pela vontade de ajudar, a liberdade de ser só ou viver em família, ser solteiro ou ser casado, ser amante ou ser amado, ser homem ou ser mulher.
Ele pede que amanhã de manhã saiamos às ruas e encontremos guardas de trânsito orientando os carros entre passos de dança. Que todas as pessoas ganhem o direito sublime de se comunicar cantando e a vida se transforme em um musical de cinema. E que em cada família se cantem histórias sobre a criação do mundo, os pequenos gestos dos grandes seres e a grandeza das mínimas coisas.
Que os velhinhos e as crianças, habitantes extremos das duas pontas da vida, sejam verdadeiramente ouvidos e celebrados por aqueles que estão no meio do caminho.
Que todo ser vivo seja tomado de uma vontade incontrolável de trabalhar e construir, criar e dividir. Que brote em cada um de nós a vontade de ajudar e a gratidão a quem nos ajude.
E que a ruas ganhem novas árvores, muitas árvores espalhadas por lá e cá, com pencas de amores novos do tamanho de jacas nascendo de seus galhos.
E assim, ao fim de tantos pedidos pensados, assim, em silêncio, sob os olhos de uma plateia apreensiva regulando seus mecanismos de tradução simultânea, o estadista respira fundo e começa sua fala:
“Hoje de manhã eu vi meu filho pequeno dormindo. O resto é só discurso.”