Quando a gente encrespa com um sonho é broca. Chega a ser desumano. A propósito, será que cachorros sonham com bifes de chuleta e as lagartas com casulos-de-asas-coloridas?
Tia Mimi, por exemplo, dizia que, enquanto não visitasse Turim para conhecer o Santo Sudário não morreria, de jeito nenhum. Era um desejo profundo, acalentado desde os tempos de noviça. Tia Mimi, coitada, desistiu de ser freira e — lamento informá-los — morreu, sim, sem conhecer a bela cidade italiana e o sagrado pano velho, que continua por lá, matando a curiosidade, desafiando os incrédulos, e fazendo a alegria dos cristãos, inclusive dos intolerantes, como aqueles que, na década de 1960, queimaram em praça pública montanhas de discos dos Beatles. Quem, afinal, era mais popular: os Beatles, Jesus Cristo ou acessos de intolerância?
Embora esteja um tanto de saco cheio com o resto da humanidade, tenho lá os meus sonhos. Nada de extravagantes. Por exemplo: quando cheguei em frente ao Edifício Dakota, em Nova York, fiquei estagnado na calçada feito um coágulo de sangue, viajando nas ideias. Rasguei um inglês macarrônico, defeituoso, com um dos seguranças. Curiosidade mórbida: eu queria saber, exatamente, onde John Lennon tinha tombado após os tiros, em 8 de dezembro de 1980.
Naquele rigoroso inverno novaiorquino, eu tinha (e ainda tenho) profundas dúvidas se haveria algo mais no céu além de Lucy e dos diamantes. Se John Lennon tivesse escapulido da morte, se — como já disse o poeta — a gente fizesse a bala parar, como ele seria hoje? Careca? Barrigudo? Mais ranzinza que o habitual? Ativista de novas causas sociais e políticas? Comporia músicas de protesto com o Bono Vox? Ou simplesmente faria as pazes com Paul McCartney e sairia em turnê pelo mundo?
Aproveitando tamanha ignorância quanto aos desígnios dessa vida, a Revista Bula pediu aos leitores que apontassem quais seriam as dez melhores músicas dos Beatles. Listamos abaixo as preferidas e já estamos com o lombo preparado, devidamente azeitado, para receber as lambadas dos descontentes. Como sói ocorre a qualquer lista, a polêmica está no ar.
Hey Jude (single de 1968)
Paul compôs esta canção em homenagem a Julian Lennon que andava tristonho e macambúzio por conta da separação de John e Cynthia. Até hoje, é com essa belezura que Paul encerra os seus shows apoteóticos. Daí, o povo canta o refrão “na-na-na-na-na-na-na” até enjoar. Como se isto fosse possível. Ao contrário do que diria Raul Seixas, esta música só tem começo e meio. De tão linda, ela nunca termina.
In my Life (Rubber Soul, 1965)
Seria possível apagar os erros do passado, como se as almas fossem de borracha? Autobiográfica ao extremo, esta é a “My Way” de Lennon e McCartney. Há controvérsias quanto à autoria da melodia, contudo, a letra é de Lennon. Uma reflexão sincera e em tempo, de um jovem artista que acabara de conquistar o seu sonho. E então? Fazer o que com ele?
Yesterday (Help!, de 1965)
Apesar de pertencer à grife Lennon e McCartney, esta canção foi inteiramente composta por Paul. Macca conta que ficou com a melodia durante meses na cabeça, e a concepção da letra foi um parto prolongado a fórceps. Valeu a pena esperar. De toda obra dos Garotos de Liverpool, esta é a canção mais regravada. Será que tem gente que não gosta?
Something (Abbey Road, 1969)
Esta é a segunda canção dos Fabulosos mais regravada em todos os tempos. Pérola de George Harrison. Muita gente pensava que a música fosse inspirada em Pattie, sua esposa à época. Nós, os homens, temos uma dívida eterna com as mulheres. Mas, desta vez, não. George se sentiu tocado por uma canção de James Taylor (que fora pupilo e afilhado musical dos Beatles): “Something in The Way She Moves”. Deu no que deu: George compôs uma obra-prima.
Blackbird (The Beatles, 1968)
Para mim pouco importa se Paul McCartney compôs esta obra inspirado nos homens ou nos passarinhos. Ecologistas e ativistas raciais — todos eles beatlemaníacos — puxam, cada qual, a sardinha pro seu lado. Detalhe certamente irrelevante para vocês: aprendi a tocar e cantar “Blackbird”. Do ponto de vista musical, há tempos eu não me sentia tão orgulhoso por ter cumprido uma meta. Tocar esta canção era um enorme desafio pra mim. Agora só falta aprender a voar.
A Day in The Life (Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band, 1967)
“Sgt Pepper’s” foi uma concepção de Paul McCartney, e é considerado um marco na história da música pop. A canção é longa (cinco minutos e meio) e foi, literalmente, construída a quatro mãos. Paul e John fundiram duas canções totalmente diferentes e o resultado foi uma das mais instigantes composições que já fizeram juntos.
Strawberry Fields Forever (single de 1967)
O orfanato Strawberry Field possuía um enorme campo arborizado onde John ia brincar com os amigos na sua infância. Naquele tempo ele se sentia diferente, especialmente desplugado da vida real, ao enxergar a vida de uma forma mais lúdica e diferente que as demais pessoas. Então, sentia-se meio louco. Desde criança, mesmo sem a interferência artificial e corrosiva das drogas, John já viajava na maionese. Coisas de artista nato e homem sensível.
All You Need is Love (single de 1967)
Parece muita ingenuidade que alguém saia por aí cantando aos quatro cantos do mundo que “tudo o que você precisa é amar”. Em tempos de Guerra do Vietnã, foi exatamente isso que os Beatles fizeram, ao tocarem, ao vivo, em Abbey Road, o hino de amor composto por John Lennon. A primeira grande transmissão em rede televisiva mundial, capitaneada pela BBC, contou com a presença em estúdio de figurinhas carimbadas como Eric Clapton e Mick Jagger que seguraram balõezinhos coloridos e deram uma forcinha no coral. Nada mal, não?
Let it Be (single de 1970)
Esta melancólica composição de Paul funciona como uma pá de cal. Foi o último single gravado pelos Beatles. Na letra, sobram ressentimento, culpa, resignação. Não tinha mais jeito. Era o fim da banda e o início de outros sonhos.
I Want to Hold Your Hand (single de 1963)
Composta na fase bobinha da banda, Paul e John tinham a intenção de destruir de vez os corações adolescentes. Projeto de gente grande, é claro. A canção atingiu o primeiro lugar nos Estados Unidos. Então, todos da banda concluíram que era chegada a hora de conquistar a América e, de quebra, o mundo inteiro. Tocaram o projeto adiante e compraram passagens para os EUA.