A outra costuma andar deslizando. Coleante e tortuosa como uma cobra. E chega com um breve silvo, se insinuando à meia luz na vida de um homem qualquer.
Muitas vezes se veste de vermelho. Embora tenha veias hirtas, corre nelas um sangue quase espumoso, de um vermelho sacrílego, que trafega nos interstícios desse corpo.
Ela até nos faz recordar daquele ditado sobre a inveja. Um prato que se come frio e que está sempre ali disposto à serventia.
Essa mulher, com madeixas de todas as cores, não tem qualquer pressa de se alojar em corações ciganos e desatentos. Mas quando finca seu espaço, também não abandona a guarida e lá permanece, reinando como aranha soberana.
Entretecendo insetos-homens, pessoas desavisadas, transformados pelas ganas de sua volúpia. É kafkiana, equilibrando-se entre a sedução e o asco. Estranha, metamórfica, em estágio eterno de lagarta — da qual ignoramos em que borboleta se transformará.
Será dourada, cinza, sépia, parecerá com aquelas bruxas noturnas e fedorentas de pouso certeiro e de mau agouro, que aderem às paredes de quartos solitários e, por conseguinte, indefesos.
Esta mulher não teme os domingos, os sábados, as noitadas em carne viva e pele crua. As rajadas de vento emocional que trespassam seu umbigo ainda róseo e sem piercings.
A outra sabe esperar como ninguém. Do mesmo modo que a alvorada aguarda paciente a hora de crepuscular e semicerrar as pálpebras.
Mulheres assim se nutrem de chuva, naufragam em dias cinzentos e iguais a qualquer dia sem rosto nem horizontes.
Ah, mas quando elas se envolvem na vida de alguém, emitem luzes quase prateadas, feérie de festas vindouras, anunciadas na fileira de dentes exemplares.
Chegam assim em silêncio, determinadas a perturbar os porta-retratos de estabelecidas e rangentes conjugalidades. Terremotos afetivos destilam avalanches passionais nos homens e seus ossos. Ópio sobre as pernas. Absinto no hálito.
Pecado não mordê-las, negras maçãs avantajadas, redondas de fetiches.
Impensável deixar de sorvê-las, como um suco de goiaba selvagem, de sabor primevo, oriundo de terras rústicas, bravas e indômitas. Frutas que estacionam distantes da civilização e dos galopes.
Quantos desejos sobrevoam as tortuosas cabeças dos machos convictos. É quando estas mulheres os deitam arfantes no chão das humildades e imundícies do mundo. Fazendo com que se submetam, rendidos às cegas, entregues exangues à deidade feminina, latejando em visão em amplo espectro.
Essas mulheres se anunciam com as intempéries, atravessam invernos em renas gigantes e tramam acender lareiras em peitos musculosos para que os mesmos possam sustê-las em toda a sua alargada voracidade.
Missas negras, pinturas góticas, óperas profanas, desterro das boas e ilibadas intenções.
A outra jamais almeja estar na linha de frente, ser a primeira, a noiva pueril escolhida.
O que a entretém são os solfejos descontínuos de uma alma em agonia. Alma de ventanias, uivando como loba, no cume de montanhas irregulares.
A outra não tenciona ter filhos. Mas quer roubá-los, ainda em fase de promessas, decididamente de você.
Arrancar sua atenção deles, extirpar seus afetos do álbum de casamento mais plácido que as poeiras da sua vida morna já depositaram alguma vez sobre ele.
Mulheres outras não anseiam por beijos, mas mordidas. Rejeitam presentes, acolhem despedidas. Trocam de imediato afagos dóceis e açucarados por arranhões seriais, grafados a ferro em fogo por unhas necessitadas de sexo.
A outra, meu amigo, não quer você.
Ela pretende devorá-lo como esfinge apoteótica, sorvê-lo inteiro como terreno árido e sem chuvas, sequer divisadas nas estações de verão.
Ela decidiu se enraizar em você. Ramificar seus prolongamentos, asfixiando todas as suas vontades bem devagar, uma por uma.
Esta é uma morte consentida, não negue. A morte da sensaboria, dos agonizantes protótipos do desejo.
A outra, perceba bem, caiu em suas mãos para desorganizar seu destino de ponta a ponta. Os caminhos supostamente traçados e controlados por suas frágeis intenções de homem firme e assentado socialmente.
A outra dói como ambicionada e paradoxal erva daninha do espírito. Move-se quase ondulante, a secretar lamentos pelos poros sujos.
A outra também é herege para que dela nasçam dúvidas breves e irrecorríveis. Imiscuídas em suas mais agudas e solitárias reflexões.
Ela ainda se esparrama pelas salas do seu corpo sem nenhum pudor, revirando seus olhos entorpecidos, esgazeados e confessos.
Se é possível trancafiá-la, de modo a que nunca mais você a veja ou a encontre?
Sim, mas se aquiete por enquanto com a resposta provisória.
Tente talvez prendê-la em uma caixinha de músicas muito antiga.
Lembre-se, todavia, que esta caixinha jamais, em qualquer hipótese, deverá ser aberta. Sequer durante os seus mais agudos sonhos ou fartos pesadelos.
Um último desafio: ouse existir sem ela.
Experimente sobreviver sem seus braços, tentáculos e ventosas quase abissais.
Porque a outra mora aí. Exatamente dentro de você. No porão ou na garagem das suas trêmulas, indisfarçáveis e crescentes demandas.