Nunca durma com pessoas que não sonham

Nunca durma com pessoas que não sonham

Morrer de rir. Morrer de amor. Morrer de saudades. Morrer de sede em frente ao mar. Plagiar um verso do Djavan. Nada disso me interessa. Não é que eu tenha medo da morte, é que ela simplesmente me irrita. A maldade — esta, sim — me dá arrepios, pois bem sei do inato talento humano para desgraçar com a vida alheia.

Escrever a respeito da morte, além de chato, é uma missão macabra das mais inglórias, pois poucos suportam o assunto. “Melhor nem pensar nisso”, é o que se diz. À exceção dos psicopatas e dos depressivos sem conserto — para os quais a morte é excitação, fascínio e até solução — o tema provoca ojeriza, pavor, impaciência e uma necessidade incrível, inadiável, de se ter fé.

É compreensível: a maioria das pessoas prefere as boas novas, as mensagens alvissareiras, a vida na sua plenitude, de preferência, estacionadas ad eternum num céu, num paraíso, numa nuvem passageira, num delírio que seja, ao lado do criador, dos santos, dos anjinhos, dos parentes que se lascaram antes da gente e dos bichinhos de estimação que já não nos lambem mais.

Não sou um sábio japonês. Não sou indiano. Não sou monge budista. Não sou esotérico. Não sou santo. Não me converti, recentemente, nem por conveniência. Não sou um sujeito zen. Não sou assim tão tranquilo, sereno e equilibrado quanto vocês supõem. Aliás, sinceramente, neste momento, não sou sequer uma boa companhia. Dentro de mim, um daqueles bombardeios que têm pipocado sobre civis em Damasco pareceria um bando de crianças divertindo-se com revólveres de espoleta.

A propósito: não é que os deputados estaduais cismaram em criar uma lei que proíbe a fabricação e a venda de armas de brinquedo? É o fim da matança fantasiosa, das perseguições pelos quintais, dos pseudo-melodramáticos pedidos de clemência. Será que os parlamentares, em busca de evidência na mídia, implicarão também com o pique-esconde, com a amarelinha, com as peladas no meio da rua, com a punheta na hora do banho, com os palavrões na Hora do Ângelus?! Pelo amor de Deus, Suas Excelências, ao menos não tasquem na lúdica brincadeira do médico-e-da-enfermeira. Aí já seria demais. Ainda mais nesta carência danada de médicos no mercado brasileiro. Enfermeiras, não. Enfermeiras há aos montes. E como elas são lindas… “Quanta imaturidade. Será que você não vai crescer nunca?” — sim, vocês podem me perguntar.

Num tempo em que a criançada se diverte com joguinhos eletrônicos e com a internet, a atropelarem mulheres grávidas (cada grávida vale 50 pontos), velhinhas de muleta (cada uma delas vale 100 pontos), deputados corruptos (bônus de 1000 pontos por cada exemplar abatido), e explodirem os miolos dos inimigos com suas superpotentes metralhadoras virtuais, brincar de matar com armas de espoleta vira caso de polícia, matéria-prima para a verborragia empolada dos psicólogos.

Eu — logo eu — que tanto matei os meus irmãos, os meus amigos, e os amigos dos meus irmãos durante as diligências fictícias da infância, hoje, na adultícia, não me acostumei com a morte. Apesar da carnificina lúdica que proporcionei na minha meninice — posso lhes assegurar — a atrocidade mais relevante que tenho praticado ultimamente é a matança de uns poucos sonhos. Os meus sonhos. Não se aflijam. Sigam os seus próprios vícios oníricos.

Então: um morto, claramente impedido que é de soltar a voz, não têm a prerrogativa de reivindicar patavina alguma. Portanto, aproveito o ensejo, a falta de criatividade, a falta de assunto e a falta de energia elétrica aqui em casa para, vivo como um lobó na ponta da vara, pleitear certas benesses durante o meu funeral, caso eu morra algum dia, se é que me entendem. Anotem aí, chapas!

Coroas de flores, prefiro não recebê-las. Porém, uma vez chegadas, que sejam colocadas do lado de fora do salão abafado, pois ninguém merece a catinga nauseante das rosas mesclada com vapores expelidos pelo morto e pelos vivos.

Vocês, que se dizem meus amigos, por favor, não permitam que a carpideira solteirona, profissional das lágrimas (esta, sim, curte um velório como ninguém), faça-me aquela clássica homenagem ao liderar um coral de idosas entoando segura-na-mão-de-deus-e-vai. Eu até que seguraria e iria embora com ele, se pudesse, se tivesse como me recompor, levantar, bater as patinhas no paletó amassado e cair fora dali.

No que tange aos indigestos lanchinhos de funeral, por favor, em benefício das cunhadas que tanto investiram na aquisição de próteses de silicone e no pagamento de cachês aos cirurgiões lipoescultores importados da Itália — sem contar a tiazinha frágil e velha cuja glicemia vive nas grimpas — evitem as quitandas adocicadas e os rissoles frios acima de cento e cinquenta calorias por unidade, pelo amor de Deus. Se vocês não acreditam em Deus, ao menos acreditem no diabetes, no suplício tesudo das cunhadas por um corpinho supimpa, no poder paralisante do botox sobre as rugas de preocupação.

Eu bem sei que, depois de morto, não se reservam assim tantos quereres a um homem, mas, eu optaria pela cremação num forno de pizzaria até virar pó. Notem que nem tudo termina em pizza. O que fazer, então, com aquele montinho de cinzas na cumbuca, eu não sei dizer, muito menos, recomendar.

Se me trancam num cofre, sentir-me-ei sozinho. Se me deixam na cozinha, poderei ser confundido com os condimentos. Se me depositam no armário do quarto, haverei de atrair baratas, ácaros, mofos e outras pragas. Se me jogam dentro do riozinho que corta a cidade, só farão piorar a poluição que já tornou aquele curso d`água um verdadeiro esgoto a céu aberto. Se me atiram num canteiro, algum ser sobrevivente haverá de ficar bastante impressionado com aquele ato, ao ponto de temer regar as plantas, podar as roseiras, mijar no gramado. Se me despejam do alto de um helicóptero sobre a cidade em que nasci, a despesa com a querosene será impagável, irritando os herdeiros. Enfim, talvez o mais sensato seja tropeçar e derrubar a tupperware de cinzas pelo caminho. O vento cuidará do resto.

E que Deus lhes pegue, já que eu continuo a me esquivar. Como eu já disse: não é que eu tenha medo da morte, é que ela simplesmente me irrita.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.