“Os Fabelmans” é um retrato sensível e semi-autobiográfico de Steven Spielberg, que, ao longo de cinco décadas de carreira, finalmente ousou expor as origens de sua paixão pelo cinema. Este é, sem dúvida, um dos filmes mais confessionais de sua filmografia, onde as memórias de uma infância marcada por inquietação criativa e por dinâmicas familiares complexas se transformam em poesia visual. A história se centra em uma família judaica com duas figuras centrais: Mitzi, uma pianista talentosa que trocou os palcos pela vida doméstica, e Burt, um cientista metódico que encontra diversão nos filmes caseiros. No meio deles está Sammy, o filho mais velho, que herda tanto a alma artística da mãe quanto a racionalidade do pai. Essa combinação de temperamentos opostos nunca resulta em caos ou ruptura definitiva, mas em uma tensão criativa constante.
A semente do fascínio cinematográfico de Sammy é plantada numa sessão de “O Maior Espetáculo da Terra” (1952), de Cecil B. DeMille. A cena do desastre de trem no filme desperta nele uma necessidade quase visceral de recriar o impacto visual que testemunhou. Com uma locomotiva de brinquedo e uma câmera emprestada, Sammy realiza sua primeira filmagem, um experimento que não é bem visto pelo pai, preocupado com o desperdício material. Já Mitzi, por outro lado, reconhece naquele momento o talento inato do filho e o encoraja a seguir adiante.
Spielberg, junto ao corroteirista Tony Kushner, captura com delicadeza esses instantes de descoberta e conflito. Mateo Zoryon Francis-DeFord interpreta o jovem Sammy com uma intensidade contida, que mais tarde é expandida por Gabriel LaBelle, dando ao personagem uma continuidade emocional impressionante. Uma das sequências mais memoráveis ocorre quando Sammy, já adolescente, dirige seus colegas escoteiros em uma ficção de guerra, exibindo um dom precoce para a narrativa visual.
A habilidade de Spielberg em dialogar com o zeitgeist e transformar ideias aparentemente singelas em fenômenos culturais é notória em toda sua carreira. Filmes como “E.T. O Extraterrestre” (1982), “A Lista de Schindler” (1993) e “Tubarão” (1975) já traziam, em suas entrelinhas, pistas dessa necessidade de explorar a própria relação com o ato de contar histórias. “Os Fabelmans” é a culminação dessa reflexão, uma obra que não apenas celebra a arte cinematográfica, mas também escancara suas dores e delícias.
Mitzi e Burt, interpretados com nuances sublimes por Michelle Williams e Paul Dano, são pilares dessa narrativa. Enquanto Burt representa a ordem e a lógica, Mitzi encarna o fogo criativo que se recusa a ser extinto. A tensão entre esses dois mundos fornece o combustível emocional que impulsiona Sammy em sua jornada. Cada olhar, cada silêncio e cada gesto contém camadas de significado, refletindo a habilidade de Spielberg em captar os detalhes mais sutis das relações humanas.
Com um olhar perspicaz e uma direção meticulosamente equilibrada entre afeto e distanciamento crítico, Spielberg reafirma em “Os Fabelmans” sua capacidade única de transformar experiências pessoais em narrativas universais. Esta obra é um lembrete de que, por trás de cada cineasta genial, há um jovem sonhador com uma câmera nas mãos e um mundo de possibilidades pela frente.
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