Sustos e gargalhadas: filme que acaba de estrear na Netflix vai agitar seu sofá Divulgação / Netflix

Sustos e gargalhadas: filme que acaba de estrear na Netflix vai agitar seu sofá

Não é de todo errado afirmar que qualquer sociedade tem o amor por princípio, já que cidadãos precisam sentir-se acolhidos junto à terra em que nasceram ou passaram a viver, conceito imediatamente análogo ao amor. Quando se fala em casamento, entretanto, essa lógica já não faz tanto sentido assim; ninguém sabe por quem seu coração pode se encantar num dos incontáveis labirintos do desejo, mas daí que isso frutifique e se mude em algo sólido, duradouro, às vezes indestrutível, não é exatamente obrigatório que se tenha a mesma origem, o mesmo sangue. “Quem Matou?” passa por cima dessa falsa premissa dos romances clássicos, anexando-a a uma sucessão de eventos macabros, tornados mais amenos pela fotografia pautada por cores berrantes, mas que devolve o filme a um noir aterrador nos momentos em que julga necessário.

O roteiro de Abishek J. Bajaj detalha um homicídio bárbaro numa noite sem lua no nordeste da Tailândia. A polícia faz de tudo para encontrar o culpado, mas não demora para que o diretor Wisit Sasanatieng deixe claro que tudo o que o espectador imaginar de estranho, de torpe, de abjeto é pouco, e quanto mais se supõe chegar perto da saída, maior se torna o novelo das emoções desencontradas que mascaram intolerância racial, questões mal resolvidas que degeneram em mágoas invencíveis, um ódio sem antídoto que perde uma família. Wisit lança mão de um flashback que trata de embaralhar ainda mais o acontecimento central do filme, o assassinato de sete pessoas na casa grande de uma fazenda no subdistrito de Bung Klua, província de Roi Et. Naturalmente, a figura que melhor encarna o desajuste com a cultura do país e o que ela pode representar, em seus aspectos louváveis ou ignominiosos — malgrado viva nessa terra e tenha se casado com uma tailandesa — é o britânico Earl, personagem de James Laver. O diretor reserva essa imagem para o final, e enquanto a trama ainda resta longe do desfecho, seduz o público com truques muito mais prosaicos. Na delegacia de Don Kratok, a mais próxima do local do crime, o comissário de polícia vivido por Phetthai Vongkumlao, se apressa em encerrar o caso acusando Earl, inconformado com o adultério de Sai, a esposa, papel de Eisaya Hosuwan, vinte anos mais jovem. Como era de se esperar, uma reviravolta chacoalha o que o delegado conseguira apurar sobre o ocorrido. Não se poderia arriscar o jeito absolutamente inventivo pelo qual Bajaj optaria  para encerrar a história, aludindo ao espírito sem mácula de June, encarnado por Suraset Aon-nim, retrato da crueldade infantil, consciente ou não, já esquadrinhada pelo escritor britânico Richard Hughes (1900-1976), autor de “Vendaval em Jamaica” (1929), e capaz de monstruosidades nada suspeitas com a providencial ajuda de um certo fruto maldito com que a terra a presenteia.


Filme: Quem Matou?
Direção: Wisit Sasanatieng
Ano: 2023
Gênero: Comédia/Suspense/Policial
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.