Tome seu calmante e segure o coração para assistir essa sequência arrepiante na Netflix Divulgação / Netflix

Tome seu calmante e segure o coração para assistir essa sequência arrepiante na Netflix

Em 1611, chega à Navarra, um antigo reino medieval no extremo norte da Espanha, o inquisidor Alonso de Salazar y Frías, enviado à região a fim de investigar a veracidade dos acontecimentos obscuros que ali se passavam. Ao cabo de meses de averiguações, o sacerdote comprovou que os habitantes daquele lugarejo esquecido, desprezado pelas autoridades e zeloso de suas próprias leis, estavam dispostos a tudo para manter a salvo suas crenças, tão macabras como antigas. “Oferenda à Tempestade”, o último capítulo da chamada Trilogia de Baztán, município na atual província espanhola, rememora pontos-chave dos dois filmes anteriores, enquanto cozinha em fogo brando as revelações que reserva ao público, todas de algum modo ligadas, claro, a Amaia Salazar, a inspetora vivida com denodo por Marta Etura desde “O Guardião Invisível” (2017). No primeiro filme da série, Fernando González Molina dá pistas acerca do que podem ser os fantasmas do passado que Salazar tanto esmera-se em exorcizar a fim de conservar seu emprego, maldição que vai se descortinando num jogo de gato e rato em que ninguém pode saber muito bem de que lado estão os heróis e os vilões, até que “Legado nos Ossos” (2019) embaralha ainda as cartas um pouco mais, agregando à mistura um elemento tão adorável quanto profético. Aqui, o roteiro de Luiso Berdejo, inspirado no romance homônimo de Dolores Redondo, expõe o calcanhar de Aquiles da heroína de Etura, obrigada a seguir averiguando os eventos macabros que se sucedem no vilarejo por cuja ordem é responsável, escandalizado com o sacrifício de bebês num ritual satânico, temendo, claro, por seu filho nuelo.

Na sequência inaugural de “Oferenda à Tempestade”, alguém sufoca um bebê com um urso de pelúcia, e um pequeno féretro surge na tela, resguardado por uma cúpula de vidro. Esse amálgama do terror mais desabridamente abjeto com um suspense refinado, que Molina conduz de forma a sempre fomentar palpites os mais equivocados. Salazar captura o principal suspeito debaixo de uma tormenta, eles vão para a delegacia e, antes que comece o interrogatório, é a policial que confessa seu esgotamento com a carreira, que a obriga a perder o tempo que poderia dedicar ao filho com tipos como aquele, sem deixar de, almodovarianamente, se queixar dos cinco meses da nova rotina de troca de fraldas, preparo de mamadeiras, choros na madrugada, horas de sono que não se repõem. O diretor volta ao longa inaugural da franquia na intenção de relembrar a morte da irmã gêmea de Salazar, assassinada pela mãe, espécie de sacerdotisa de uma igreja que atravessa os séculos pregando a morte de bebês sem que nunca reste muito claro por que e, o principal, o motivo pelo qual os crimes são abafados. Quanto mais se enfronha nessa trama monstruosa, mais ela se convence de que a motivação para os crimes em Baztán não remonta a propósitos de uma seita diabólica, mas a questões que envolvem poder, dinheiro e os desdobramentos em que um e outro inexoravelmente implicam. Essa é a deixa para que o juiz Javier Markina, de Leonardo Sbaraglia, entre na história, mas não como Salazar ou qualquer outro personagem — e, claro, quem assiste — suporia.

No terceiro ato, Molina se socorre das memórias de sua protagonista, inconformada com a perversão atávica e inexplicável da mãe, Rosario, interpretada por Susi Sánchez, em passagens que, se exploradas com mais entusiasmo, fariam mesmo justiça ao diretor de “Mães Paralelas” (2021) e “Tudo sobre Minha Mãe” (1999), ou ao igualmente talentoso Ramón Salazar, de “O Vazio do Domingo” (2018). Não era este o propósito, eu sei, mas não custava nada tentar.


Filme: Oferenda à Tempestade
Direção: Fernando González Molina
Ano: 2020
Gênero: Policial/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.