Filme da Netflix sobre história real de um assassino em série prova que a vida pode ser mais assustadora do que a ficção Divulgação / End Cue

Filme da Netflix sobre história real de um assassino em série prova que a vida pode ser mais assustadora do que a ficção

A relação entre pais e filhos sempre apresenta seus pontos de tensão, sobretudo na adolescência destes. O cinema sabe se apropriar da atmosfera de inadequação e questionamento que passa a grassar numa família em determinada quadra da vida de seus membros para dar mais credibilidade a suas histórias obscuras, e no suspense “The Clovehitch Killer” (2018), do diretor Duncan Skiles, o que sobressai é justamente o jogo de gato e rato de um chefe de família que seguiria passando ao largo de qualquer suspeita pela vida afora, mas fica encurralado por alguém que julgava ter nas mãos.

A vida tem o grande dom de se impor sobre a ficção. A história por trás do roteiro de Christopher Ford soa tão bizarra que só poderia mesmo ter saído dos fatos. Ford toma a criminosa de Dennis Lynn Rader, ainda que colateralmente, para conferir a substância de que seu terror necessita, e acerta em cheio. O autointitulado Estrangulador BTK, uma referência ao método que usava para seviciar suas vítimas (blind, torture and kill, ou “vendar, torturar e matar”), foi considerado culpado pelo homicídio cruel de pelo menos uma dezena de mulheres nos anos 1990, mas desde sua prisão nunca mais emitiu uma declaração pública sobre o que fizera.

Chefe de um grupo de escoteiros ligado a uma igreja protestante de uma cidadezinha do Kentucky, estado do sudeste dos Estados Unidos, Rader era perito em atividades ao lar livre, muitas com o emprego de cordas, tendo, portanto, livre acesso a um de seus fetiches macabros. Decerto temendo uma enxurrada de processos, em seu filme Skiles transforma Rader em Donald Burnside, um tipo exemplar, até tedioso em sua correção integral. A tal defesa que um ator encampa por seu personagem se aplica com justeza a um irreconhecível Dylan McDermott; pai de família amoroso, marido devotado e, acima de tudo, um homem temente a Deus, percebe-se logo no personagem que alguma coisa não quer se encaixar ali, o que o talento do ator esconde até o momento decisivo. Don compõe com Cindy, vivida por Samantha Mathis, a filha menor Susie, de Brenna Sherman, e Tyler a típica família média americana, de comercial de margarina. Nem pobres nem ricos, vivem com o conforto que a empresa de reparos domésticos de Don lhes permite. Tudo seria irretocavelmente perfeito, não fosse a personalidade naturalmente irrequieta do primogênito.

Queimando-se com gosto na chama da vida, o personagem de Charlie Plummer apanha a chave da caminhonete do pai na calada da noite para o encontro com uma colega do grupo de escotismo liderado por Don, do qual também faz parte. Da mesma forma que McDermott, Plummer é outro tiro certo no elenco de “O Assassino de Clovehitch”, e a ansiedade por levar a cabo seu desejo é sentida pelo espectador, mas quando a garota se abaixa para procurar a alavanca que reclinaria o banco, encontra algo que corta o clima. O pior é que, além de não acreditar que o objeto não se refira a ele, a moça conta a história para um amigo e o rumor se espalha. Não demora para que Tyler tenha de se combater a fama de pervertido, mas o que o consome mesmo é saber quem protagoniza a situação retratada.

Por óbvio, o romance morre na praia, e mal ele se acostuma à ideia de ter a vida devassada, Kassi cruza o seu caminho. Especialista autodidata no caso de assassinatos em série que tornaram a cidade morbidamente famosa, Madisen Beaty dá vida a uma Kassi que experimenta a angústia recém-instalada no cotidiano de Tyler desde a morte da mãe, uma das dez mulheres trucidadas pelo maníaco. É ela quem instiga o personagem de Plummer a tal ponto que o rapaz acaba invadindo o paiol nos fundos da casa da família, e o que encontra é aterrador. Infelizmente, ele já não nutre mais qualquer dúvida sobre o autor dos crimes.

Essa descoberta marca o encerramento do primeiro ato de “O Assassino de Clovehitch”, momento em que o suspense cede lugar ao terror, com espaço também para um coming-of-age sucinto, esmeradamente destrinchado, em que fica claro que o cristal se rompera e nada será como antes na trajetória do protagonista. Tyler toma pé da realidade de uma maneira orgânica — e a total ausência de jumpscares e de sangue é uma qualidade impressionantemente louvável no filme —, sem prejuízo do interesse na história, que cresce em medida inversamente proporcional à participação dos demais personagens na trama. Na vida, Cindy pode ter sido uma mulher de uma submissão exasperante, mas irrita ainda mais saber que tenha passado quase vinte anos ao lado de um facínora sem nunca se atentar para suas esquisitices — uma das perversões de Don era se travestir quando a esposa saía, expediente que chegava ao cúmulo de aplicar para dar vazão a seus instintos bestiais —, deixando que o filho do casal solucionasse o mistério. Se o trabalho de Dylan McDermott e Charlie Plummer já enchia os olhos, a performance de Madisen Beaty, fria, como lhe exige sua Kassi, mas desarmada, vem para fazer “O Assassino de Clovehitch” ainda mais estimulante. Plummer consegue levar a verossimilhança do desespero de Tyler até o fim, entre paralisado pela realidade de desvendar a real natureza do homem que mais admirava e vencer a melancolia estarrecedora que o assola a fim de dar ao caso o desfecho mais justo, ao passo que o veterano mergulha corajosamente no desconhecido de Don, um psicopata milimetricamente dosado, entre o tiozão caricato, de cabelo e bigode tingidos, e o monstro que passa por cima de qualquer um — do filho, inclusive — para manter o status de cidadão de bem e alma generosa que conquistou, desfazendo da inteligência alheia mesmo quando pego. Por seu turno, Beaty reforça o time, imprimindo à antagonista o papel que lhe cabe: atear ainda mais fogo ao enredo.

Apresentando uma mudança de perspectiva pela qual o espectador já esperava, “O Assassino de Clovehitch” soaria previsível, mas até isso Ford e Skiles conseguem reverter. No filme, Donald Burnside goza de um final honroso, homenageado pelo filho numa cerimônia para os membros da igreja que frequentava, revolta que a vida trata de mitigar: Dennis Rader segue encarcerado, aos 76 anos, no Instituto Correcional de El Dorado, no Texas, onde cumpre prisão perpétua, sem chance de liberdade condicional.


Filme: O Assassino de Clovehitch
Direção: Duncan Skiles
Ano: 2018
Gênero: Suspense/Terror/Coming-of-age
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.