Extinção, de Thomas Bernhard: o negativismo como estética e existência

Extinção, de Thomas Bernhard: o negativismo como estética e existência

O que entendemos, afinal, por negativismo? Quando falamos sobre o negativismo, referimo-nos a uma visão que rejeita as normas, as convenções e até mesmo a estrutura da vida tal como a conhecemos. Mas o que significa abraçar o negativismo no mais profundo sentido da palavra? Seria a rejeição das verdades universais ou a recusa de qualquer forma de consolo oferecido pelo mundo? Esse questionamento não é apenas filosófico, mas também existencial, e se desdobra de maneira brutal nas páginas de “Extinção”, de Thomas Bernhard. Bernhard leva ao extremo a possibilidade de viver sem a busca por sentido, sem a pretensão de estabilidade. A própria linguagem de “Extinção” opera como um instrumento de destruição, de uma autossabotagem deliberada. Mas como chegamos a essa posição em que a negatividade não é apenas um modo de ver o mundo, mas uma ferramenta de autodestruição?

Desde a antiguidade, o negativismo encontrou terreno fértil na filosofia. Heráclito, o filósofo pré-socrático, já dizia que “o conflito é o pai de todas as coisas”. Para ele, a vida era constituída por uma tensão constante, uma luta que não podia ser resolvida em harmonia. Sua filosofia antecipa um certo pessimismo em relação à possibilidade de unidade ou de paz, algo que mais tarde seria aprofundado pelos cínicos, como Diógenes de Sinope. Diógenes, em sua recusa das convenções sociais e políticas, viveu a filosofia como uma prática de desmantelamento de ilusões, incluindo a própria noção de civilização. O negativismo aqui assume um caráter de negação ativa das normas da vida em sociedade, que se relaciona com a atitude de Bernhard ao destroçar as convenções narrativas e linguísticas em “Extinção”.

Extinção, de Thomas Bernhard
Extinção, de Thomas Bernhard (Companhia das Letras, 526 páginas)

Na Idade Média, o negativismo filosófico aparece de maneira sutil em autores como Agostinho, que, em “As Confissões”, fala da corrupção inerente à alma humana e da impossibilidade de redenção sem a intervenção divina. A visão de mundo de Agostinho, marcada pela ideia do pecado original, ressoa em muitos aspectos do negativismo moderno: a vida terrena, em sua natureza decaída, é um caminho inevitável de sofrimento e erro. No entanto, onde Agostinho via uma possível salvação, Bernhard propõe uma extinção absoluta. A negação de qualquer redenção ou finalidade na linguagem e na existência é o que separa Bernhard de uma visão medieval do mundo: para ele, a única saída é o colapso total.

Chegando à modernidade, o negativismo ganha uma expressão potente no pessimismo filosófico de Arthur Schopenhauer. Em “O Mundo como Vontade e Representação”, Schopenhauer argumenta que o núcleo da existência é a vontade cega e irracional, uma força que nos empurra incessantemente para a insatisfação e o sofrimento. Para Schopenhauer, a vida é essencialmente negativa, e a salvação, se é que existe, só pode ser encontrada na negação da própria vontade, o que aproxima o pensamento do filósofo alemão à filosofia oriental. Schopenhauer coloca a autodestruição em termos metafísicos, mas Bernhard transforma essa visão em linguagem, sugerindo que o próprio ato de escrever é uma manifestação dessa vontade negativa.

Nietzsche, por sua vez, oferece uma virada provocadora nesse panorama ao abraçar o que chamou de “niilismo ativo”. Em vez de simplesmente lamentar o colapso das verdades e dos valores tradicionais, Nietzsche celebra essa destruição como uma oportunidade de recriação. Em “Assim Falou Zaratustra”, ele sugere que a morte de Deus abre o espaço para o surgimento do “super-homem”, que cria seus próprios valores. Thomas Bernhard, porém, retoma o niilismo numa chave trágica e radical: em “Extinção”, a possibilidade de reconstrução é negada. A linguagem em si, no romance, torna-se o veículo do próprio esgotamento da existência.

No século 20, figuras como Theodor Adorno e Emil Cioran aprofundaram essa linha de pensamento. Adorno, especialmente em “Dialética Negativa”, reflete sobre a impossibilidade de redenção em um mundo devastado pela racionalidade instrumental. A experiência do Holocausto destruiu qualquer esperança na razão como caminho para a libertação, e o negativismo de Adorno se manifesta como uma recusa em aceitar que o pensamento pode, de fato, reconciliar-se com a realidade. Para Adorno, a única filosofia possível é a que não oferece conforto, mas perpetua a negatividade. Thomas Bernhard, ao recusar a catarse em sua escrita, segue esse caminho: não há solução, apenas a revelação crua da extinção.

Emil Cioran, com sua visão desolada da existência, é um dos pensadores que melhor dialoga com o pessimismo e o negativismo presentes na obra de Thomas Bernhard

Cioran, em obras como “Breviário de Decomposição”, explora a autodestruição em termos existenciais. Sua prosa revela um autor que parece habitar o limiar entre a vida e o nada, onde a própria linguagem vacila. Para ele, a existência é uma forma contínua de decomposição, e a única honestidade possível é reconhecer o vazio no centro da experiência humana. A afinidade entre Cioran e Bernhard é evidente: ambos transformam a desesperança em estilo literário, onde a repetição, a exasperação e o cansaço se tornam parte da estrutura da obra.

O negativismo de Bernhard não é apenas um pessimismo filosófico ou existencial. É uma prática estética e literária, uma forma de conduzir a linguagem ao ponto da autossabotagem. Cada frase parece minar a que a precedeu, numa espiral de negação que se assemelha a um processo de decomposição. A linguagem, que deveria ser o veículo da comunicação e da criação, torna-se o meio pelo qual o narrador destrói a si mesmo e o mundo ao seu redor. Nesse sentido, Bernhard radicaliza o negativismo ao transformá-lo numa estética, levando a autodestruição à própria estrutura do romance.

Ao traçar esse panorama do negativismo desde a antiguidade até os dias de hoje, percebemos que o romance de Bernhard se insere numa longa tradição de pensamento que desconfia das promessas de redenção e sentido. Bernhard nos lembra, de maneira cruel e brilhante, que a extinção pode ser o destino não só do indivíduo, mas da própria linguagem. A pergunta que resta ao leitor é: até que ponto estamos dispostos a seguir essa via até o fim?

Se há um autor contemporâneo que encarna esse negativismo e o eleva à categoria de arte literária, esse é Thomas Bernhard. Nascido em 1931, na Áustria, Bernhard cresceu sob o impacto da Segunda Guerra Mundial e da destruição que o nazismo deixou no seu país. A infância marcada pela doença e pelo isolamento, agravada pelo internato em uma escola nazista, contribuiu para a formação de uma visão de mundo sombria e desencantada, que mais tarde se refletiria em sua literatura. O sentimento de alienação, a constante crítica ao Estado austríaco e à hipocrisia da sociedade europeia do pós-guerra são temas recorrentes em sua obra, permeada por uma ironia amarga e um pessimismo corrosivo.

A escrita de Bernhard, caracterizada por longos monólogos interiores, repetições obsessivas e uma sintaxe densa, frequentemente desorienta o leitor. Ele recusa a estrutura convencional da narrativa, preferindo uma prosa que espelha o fluxo caótico do pensamento e da linguagem como forma de destruição e de construção simultâneas. Sua obra é marcada pela negação da harmonia, pela recusa de qualquer fechamento ou conclusão. Como muitos de seus personagens, Bernhard parece falar a partir de um lugar de esgotamento, onde a própria fala já se transformou em um grito de desespero.

Entre suas obras mais conhecidas estão “Geada”, “O Náufrago”, de 1983, depois deste do qual falamos aqui, é o seu maior feito literário; “Tala”, “O sobrinho de Wittgenstein”, “Árvores Abatidas” e o próprio “Extinção”, que é considerado seu grande testamento literário. Cada um desses romances explora a ideia de que a linguagem, longe de ser um meio de salvação, é um mecanismo que condena o indivíduo ao isolamento e à autossabotagem. Em “O Náufrago”, por exemplo, Bernhard narra a história de um pianista que, ao tentar alcançar a perfeição artística, acaba se perdendo na impossibilidade de atingir o ideal. A música, como a linguagem em “Extinção”, revela-se não um caminho de transcendência, mas de ruína. Ainda na primeira década deste século 21, escrevi para a Revista Bula e o Jornal Opção um ensaio sobre a estética da repetição em “O Náufrago”, chamado “Estilo e Precisão em Thomas Bernhard”, no qual abordo essa questão de uma linguagem que se repete em torvelinhos inebriantes, que nos geram náusea e nos fazem encontrar sentido na falta de sentido.

A crítica mordaz à Áustria também é um elemento fundamental em sua obra. Bernhard atacava, de maneira sistemática e implacável, o conservadorismo austríaco, a cultura do silêncio sobre o passado nazista e a hipocrisia das instituições culturais e políticas. Em discursos públicos e entrevistas, sua atitude provocativa e iconoclasta o transformou numa figura polêmica, muitas vezes rejeitada pelo próprio país. Essa postura crítica, no entanto, também lhe conferiu um lugar único na literatura europeia do século 20, onde sua voz se destaca pelo caráter subversivo e pela recusa de qualquer forma de condescendência.

A relevância de Thomas Bernhard para a literatura moderna vai além de seu estilo inconfundível ou de suas temáticas. Ele inaugura uma forma de negativismo literário que não se limita à crítica social ou filosófica, mas que se manifesta no próprio ato de escrever, na escolha das palavras e no ritmo da narrativa. Bernhard nos força a encarar o abismo da linguagem, a extinção do sentido e, em última análise, a impossibilidade de redenção pela arte. Esse radicalismo estético e existencial é o que garante a permanência de sua obra, que continua a desafiar, desconcertar e, sobretudo, a desmantelar qualquer forma de otimismo superficial.

Em “Extinção”, Bernhard leva seu projeto literário ao limite. O romance é narrado por Franz-Josef Murau, um homem que, distanciado de sua família aristocrática e da Áustria, vive em Roma como professor de filosofia e literatura. Murau recebe a notícia da morte de seus pais e de seu irmão em um acidente de carro, o que o força a retornar à sua terra natal, Wolfsegg, uma propriedade rural que simboliza tudo o que ele despreza: o conservadorismo, a hipocrisia, o passado nazi da família e do país.

Murau, ao longo do livro, repassa em pensamento todas as razões pelas quais rejeita sua família e sua origem. Ele vê a herança familiar como uma prisão, uma condenação que o aprisiona em um ciclo de tradições que ele considera podres. Sua mãe, uma figura autoritária, e seu pai, um homem conivente com as atrocidades do regime nazi, são alvos de seu desprezo. O irmão, Johannes, era o herdeiro esperado de Wolfsegg, alguém que, aos olhos de Murau, incorporava perfeitamente a mediocridade e a falta de visão crítica que ele tanto despreza. A irmã caçula, Amalia, parece seguir o mesmo destino, conformada à vida em uma sociedade que Murau considera irrecuperável.

A morte da família, no entanto, não traz a libertação esperada. Murau sente-se obrigado a retornar a Wolfsegg, onde se confronta não apenas com o legado material da propriedade, mas com as memórias que ele tentava apagar ao se distanciar. A narrativa se desenrola como um longo monólogo, em que Murau, num fluxo de pensamento contínuo, desconstrói sua própria história familiar e sua própria identidade. O processo de extinção que o título evoca não é apenas a aniquilação física dos membros da família, mas uma extinção simbólica, uma tentativa de Murau de destruir tudo o que Wolfsegg representa.

Ao longo dessa reflexão amarga, figuras como Gambetti, um jovem aluno de Murau em Roma, e o casal Spadolini, amigos íntimos de Murau, surgem como contrapontos à sua desconstrução da família. No entanto, até esses personagens acabam absorvidos pela negatividade do narrador. Gambetti é, em certa medida, o reflexo das aspirações frustradas de Murau, uma jovem mente que ainda pode ser moldada, mas que Murau já prevê como fadada ao fracasso. Spadolini, por sua vez, representam a superficialidade da alta sociedade romana, outra camada de hipocrisia que Murau também rejeita, embora se mantenha próximo dela.

O enredo não é movido por grandes acontecimentos, mas por essa densa trama de reflexões e ressentimentos que se desenrola na mente de Murau. A volta a Wolfsegg e o confronto com o legado familiar tornam-se um pretexto para Bernhard explorar os limites da linguagem e da memória. Murau tenta, com cada frase, apagar o passado, extinguir qualquer vestígio de sua conexão com a família e com a Áustria, mas, como Bernhard tão habilmente mostra, a linguagem é também uma prisão, e Murau, por mais que tente, não pode escapar daquilo que o constitui. A extinção nunca é completa.

O estilo deste romance é, sem dúvida, um dos aspectos mais marcantes da obra e fundamental para compreendermos a profundidade do projeto literário de Thomas Bernhard. A linguagem, em vez de funcionar como um meio de comunicação ou esclarecimento, é um campo de batalha onde se desenrolam os conflitos internos do narrador. O texto é construído por meio de longas frases, muitas vezes sem pausas, que seguem um ritmo implacável, semelhante a uma avalanche verbal. Esse fluxo de consciência, embora próximo ao que outros autores modernistas empregaram, como Virginia Woolf ou James Joyce, em Bernhard assume um caráter diferente, mais agressivo, marcado pela autossabotagem e pela repetição exasperante de certos termos e ideias. O leitor não é levado a se perder nas sutilezas do inconsciente, mas a ser arrastado pela torrente de negatividade que caracteriza o pensamento do narrador.

A repetição é, sem dúvida, a técnica mais central no estilo de Bernhard, criando uma sensação de claustrofobia na leitura. Termos como “ódio”, “repulsa”, “extinção” e “Wolfsegg” reaparecem como obsessões, insistindo em marcar o texto e aprisionar o leitor no mesmo ciclo de destruição e rejeição que Murau experimenta. Essa repetição, longe de ser meramente estilística, reflete a incapacidade do narrador de se libertar do passado e da própria linguagem. Cada tentativa de explicação ou justificativa é seguida por uma negação, que é reiterada até perder qualquer vestígio de sentido. Bernhard, assim, demonstra como a linguagem pode ser usada para esgotar, não para esclarecer.

Outro elemento interessante no estilo de Bernhard é o uso de marcas de oralidade no texto, apesar de o romance ser profundamente introspectivo e quase completamente narrado na forma de um monólogo interior. Murau fala como se estivesse conversando consigo mesmo, mas sem as hesitações ou ambiguidades naturais do discurso falado, lembrando aqui e ali o Céline de “Morte a Crédito”. Em vez disso, o narrador parece estar preso em uma retórica rígida, quase como se estivesse dando uma palestra que precisa seguir até o fim, mesmo que suas próprias ideias colapsem durante o processo. O ritmo da narrativa, portanto, combina a fluidez do pensamento com uma dureza retórica que não permite ao leitor qualquer descanso. A ironia é que essa simulação de oralidade, que em outros autores poderia criar proximidade com o leitor, aqui reforça o distanciamento e a sensação de enclausuramento.

Samuel Beckett
Samuel Beckett, com seu estilo minimalista e niilista, ecoa o esvaziamento da linguagem que Bernhard leva ao extremo em sua obra

Além do uso de repetição e oralidade, o fluxo de consciência se diferencia por sua densidade erudita. Murau, sendo um professor de filosofia e literatura, constantemente referencia autores e pensadores que permeiam seu mundo intelectual. Em um momento, o personagem diz estar lendo quem? Thomas Bernhard. Referências a Goethe, Kant, Nietzsche, Spinoza e outros aparecem de maneira quase casual, entrelaçadas ao fluxo de pensamento do narrador. Essas referências, no entanto, não servem para elevar o discurso ou oferecer soluções filosóficas. Ao contrário, são muitas vezes usadas como instrumentos de ironia ou de rejeição, como se a cultura erudita, assim como a herança familiar de Murau, estivesse condenada à extinção. A erudição, para Murau, é mais um elemento da prisão em que se encontra, não um meio de escape.

Trata-se de um estilo que é uma manifestação visceral do negativismo. A linguagem torna-se o meio pelo qual o narrador tenta, sem sucesso, aniquilar seu passado e sua identidade. Ao levar a linguagem ao ponto de esgotamento, Bernhard desafia não apenas as convenções do romance tradicional, mas também as expectativas do leitor, que se vê confrontado com um texto que, em vez de oferecer respostas ou revelações, revela apenas o vazio. A estratégia de Bernhard é radical, porque transforma o próprio ato de leitura em uma experiência de extinção: a cada frase repetida, a cada pensamento retornado, a possibilidade de sentido é lentamente apagada, até restar apenas o silêncio iminente da linguagem esgotada.

A estrutura de “Extinção” é um dos aspectos mais intrigantes e desafiadores da obra. Diferente do romance tradicional, onde os parágrafos servem para organizar o fluxo da narrativa e permitir ao leitor um ritmo de leitura mais controlado, Bernhard opta por blocos narrativos extensos, praticamente ininterruptos. Esses blocos criam uma sensação de sufocamento, em que a leitura se torna uma experiência contínua e exaustiva, sem as pausas naturais que parágrafos convencionais proporcionam. A escolha dessa forma não é arbitrária: ela reforça a ideia de que o narrador, Murau, está preso em seu próprio fluxo mental, incapaz de interromper suas reflexões e, de certa forma, condenado a repetir incessantemente suas obsessões e ressentimentos.

Os blocos extensos também subvertem a ideia de linearidade narrativa. Em vez de uma progressão clara de eventos, o romance parece ser uma longa digressão, em que o presente e o passado se entrelaçam de maneira quase indistinta. Murau transita entre memórias da infância, suas reflexões filosóficas e suas impressões sobre a morte dos pais e do irmão, sem que haja uma estrutura cronológica ou um desenvolvimento evidente. Essa fragmentação interna, contudo, está contida dentro de blocos que, pela sua forma, sugerem uma unidade. É como se Bernhard quisesse nos mostrar que, por mais que o pensamento se desfaça em múltiplas direções, ele sempre retorna ao mesmo ponto: à extinção, à impossibilidade de escapar da herança familiar e cultural.

Essa divisão por blocos ininterruptos está intimamente ligada ao ritmo da prosa de Bernhard. A sensação de continuidade quase sufocante do fluxo de consciência de Murau é acentuada pela falta de pausas visuais. Sem a quebra de parágrafos, o leitor é forçado a acompanhar o fluxo de pensamento do narrador de maneira imersiva, como se estivesse aprisionado dentro de sua mente. Esse efeito, embora desconcertante, é precisamente o que Bernhard deseja alcançar: uma narrativa em que a forma espelha o conteúdo, em que a estrutura do texto reflete a impossibilidade de Murau de se libertar do ciclo de negatividade em que se encontra.

A ausência de divisões mais tradicionais também contribui para a ambiguidade da voz narrativa. Embora Murau seja o único narrador, sua voz se mistura, em vários momentos, com as de outras figuras que o cercam. Não há claras distinções de quem está falando, e muitas vezes as falas de outros personagens surgem em meio às reflexões de Murau, sem qualquer marcação gráfica que as destaque. Esse processo de fusão entre a voz do narrador e as vozes que o cercam cria uma sensação de desconexão, como se as fronteiras entre o eu e o outro, entre o pensamento e a realidade, estivessem permanentemente dissolvidas.

A estrutura do romance, portanto, é uma extensão da própria temática. Bernhard, ao abolir os parágrafos tradicionais e ao organizar o romance em blocos narrativos densos e contínuos, propõe uma experiência de leitura que força o leitor a mergulhar no caos mental de Murau. Assim como o narrador está preso em seu ciclo de repulsa e destruição, o leitor se vê envolto na mesma dinâmica, sem qualquer possibilidade de respiro ou de uma pausa. A escolha estrutural, nesse sentido, não é apenas estilística, mas uma manifestação concreta do negativismo que permeia toda a obra, em que a forma e o conteúdo se entrelaçam para criar uma experiência de extinção literária.

O estilo e a estrutura, neste caso, não apenas refletem o negativismo, mas o intensificam como uma filosofia de linguagem e existência. Ao optar por blocos narrativos extensos e uma linguagem saturada de repetição, Bernhard promove um esvaziamento progressivo do significado. A estratégia aqui é de corrosão. Cada palavra, repetida exaustivamente, perde a força que normalmente teria, chegando a um ponto de desgaste total. Esse processo ecoa as ideias de Jacques Derrida sobre a desconstrução da linguagem, em que os significados fixos se desintegram e as palavras se revelam insuficientes para conter a realidade. No caso de Bernhard, a palavra não é mais um veículo de compreensão ou comunicação, mas um instrumento de autodestruição.

Derrida argumenta que o sentido de uma palavra nunca está completo, sempre fugindo de sua totalidade, deixando rastros que apontam para outros significados. Bernhard explora exatamente essa falência da linguagem, em que a repetição acaba por destruir as camadas de significado e revelar apenas um vazio fundamental. O leitor, diante da prosa circular e da insistência temática, é levado a uma experiência de desgaste semântico, onde as palavras perdem progressivamente sua relação com as coisas que pretendem representar. Essa desconstrução contínua não apenas subverte a ideia de narrativa tradicional, mas promove um verdadeiro aniquilamento da linguagem enquanto ferramenta de construção de sentido.

Bernhard se afasta da ideia de que a linguagem possa ser um meio de redenção ou salvação, como sugerido por outros autores modernistas que trabalhavam com o fluxo de consciência. Enquanto autores como James Joyce ainda viam na fragmentação uma possibilidade de recompor novas significações, Bernhard recusa qualquer esperança. Ele parece sugerir que a linguagem está corrompida na sua essência, incapaz de produzir qualquer tipo de verdade ou coerência. Nesse sentido, há uma relação direta entre o estilo repetitivo de Bernhard e o desejo de Murau de extinguir tudo à sua volta, inclusive a si mesmo. A linguagem, assim, torna-se a última fronteira a ser destruída.

O resultado dessa abordagem é um colapso da comunicação. Murau não está interessado em compartilhar ou dialogar, mas em isolar-se ainda mais por meio de sua retórica aniquiladora. A palavra, nesse contexto, torna-se um fardo, uma armadilha. O que resta, após esse processo de extinção linguística, é um silêncio opressivo, o que também lembra as reflexões de Heidegger sobre a linguagem como um “lar do ser”. Para Bernhard, no entanto, esse lar é inabitável. Murau está em um estado de exílio perpétuo, e a linguagem, ao invés de acolhê-lo, o empurra para fora de qualquer possibilidade de pertencimento ou entendimento.

Ao desconstruir a própria lógica da narrativa e da linguagem, Bernhard também toca em questões levantadas por filósofos como Theodor Adorno. Adorno, em “Minima Moralia”, sugere que em uma sociedade marcada pela alienação e pelo sofrimento, a linguagem já não pode cumprir seu papel tradicional de mediação e esclarecimento. Essa ideia ganha forma literária: a linguagem de Murau, ao invés de aproximar, afasta; ao invés de criar sentido, dissolve-o. O negativismo, assim, não é apenas um posicionamento filosófico do personagem, mas uma prática literária que permeia toda a obra.

O estilo e a estrutura de “Extinção” são o acabamento final do projeto de Bernhard de destruir qualquer ilusão de coesão narrativa ou linguística. Ele constrói um romance que parece, de dentro para fora, devorar a si mesmo, revelando apenas o vazio que resta quando a linguagem é levada ao seu limite de exaustão. Não há possibilidade de renovação ou reconstrução. A extinção, no caso de Bernhard, é literal e total: o colapso não é apenas dos personagens ou da história, mas da própria linguagem que os sustenta.

Trata-se, sem dúvida, da obra-prima definitiva de Thomas Bernhard, onde o autor atinge o ápice de sua visão literária radical e subversiva. Um livro que transcende a mera narrativa de um personagem em crise: é uma meditação feroz sobre a falência da linguagem, sobre a incapacidade de comunicar e de encontrar um lugar no mundo, seja pela palavra, seja pela memória. Não há redenção aqui, nem mesmo no estilo, que impõe ao leitor o mesmo desconforto existencial que consome o narrador. É uma obra de corajosa ousadia, que desafia não apenas os limites da narrativa, mas a própria natureza do que entendemos como literatura. Nesse percurso, Bernhard não apenas reafirma sua genialidade literária, mas redefine o que pode ser considerado o “fim” na arte de narrar: um fim que não se encontra na última página, mas em cada palavra que se esgota, em cada pensamento que se dissolve no vazio.