Ministério da Cultura confunde ciência com religião ao falsificar Machado de Assis

Ministério da Cultura confunde ciência com religião ao falsificar Machado de Assis

Na adaptação de “O Alienista”, realizada com dinheiro público, a escritora-empresária Patrícia Secco escreve que “a índole da ciência é a aceitação” — uma completa sandice que Machado de Assis jamais escreveria

Se o Ministério da Cultura tivesse um mínimo de respeito pela nação brasileira, ao invés de construir um túnel com 60 mil livros, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, para marcar o lançamento da falsificação de “O Alienista”, de Machado de Assis, perpetrada pela escritora-empresária Patrícia Secco, ele mandaria diretamente para a reciclagem os 600 mil exemplares do livro, adaptado juntamente com “A Pata da Gazela”, de José de Alencar. Mesmo jogando fora os mais de R$ 1 milhão gastos com a adaptação, o prejuízo seria muito menor, poupando os jovens e demais leitores brasileiros de consumirem um Machado de Assis completamente adulterado, como demonstrei no artigo “Discípula de Paulo Freire assassina Machado de Assis”.

Mas a somatória dos erros apontados naquele artigo está longe de abarcar todos os problemas da arbitrária adaptação de Patrícia Secco. Explicar a necessária reposição de cada palavra e cada frase do texto original exigiria um livro muito maior do que o próprio conto de Machado de Assis somado à tosca adaptação de sua obra patrocinada pelo MEC. “O Alienista” é um tratado de sociologia do conhecimento em forma de ficção e é justamente essa sua característica essencial que se perde na adaptação de Patrícia Secco. A complexa figura do Dr. Simão Bacamarte — que simboliza tanto o bem quanto o mal que a ciência acarreta — só pode ser plenamente compreendida quando se atenta para a linguagem com que esse personagem é meticulosamente bordado por Machado de Assis no correr da narrativa.

Não só os adjetivos mas até os verbos que descrevem suas ações foram escolhidos a dedo por Machado de Assis e não podem ser alterados de forma alguma, sob pena de se desconstruir esse herói trágico da ciência criado pelo escritor brasileiro. Ao contrário do que tende a parecer à primeira vista, “O Alienista” não é apenas uma crítica arrasadora à prepotência do progresso científico — ele é também uma homenagem à inquietação intelectual do autêntico cientista, que jamais deve abdicar da busca do conhecimento, ainda que ao preço de sacrificar-se a si mesmo. Há casos de cientistas que, com o risco da própria vida, ousaram se tornar cobaias de suas próprias experiências. Foi o caso do médico e microbiologista polonês Alberto Sabin (1906-1993), naturalizado norte-americano, que testou em si mesmo o vírus vivo da poliomielite para produzir a vacina que iria vencer a doença.

Simão Bacamarte é um cientista dessa estirpe e suas demonstrações de imparcialidade, como internar sua própria mulher no manicômio, ou de grande espírito público, como abdicar das subvenções da Câmara à Casa Verde, ajudam a compor o seu caráter incorruptível. Mas tão importante quanto suas ações é sua vida interior, que Machado de Assis, como exímio psicólogo da alma humana, evita descrever explicitamente, preferindo fixá-la por meio de pequenos gestos do alienista, como um olhar perquiridor sobre a multidão, um sorriso complacente para a esposa, um passeio pelas ruas com o boticário. Percebe-se, em cada uma de suas atitudes, mesmo nas mais banais, que Simão Bacamarte jamais baixa a guarda de seu espírito investigativo, que está sempre em busca de dados para confrontar ou corroborar as hipóteses que lhe fervilham na cabeça.

Deturpando o conceito de ciência

Em sua adaptação de “O Alienista”, a escritora-empresária Patrícia Secco passa por cima de todas essas nuances, começando por deturpar o próprio conceito de ciência, atribuindo a Machado de Assis uma afirmação capaz de envergonhar os loucos da Casa Verde. Depois que D. Evarista, contrariando os prognósticos científicos de Simão Bacamarte, não lhe deu filho algum, o médico não se desesperou e, para ter certeza da esterilidade da esposa, esperou três, quatro, cinco anos, só então partindo para um estudo profundo da matéria em busca de uma solução para o problema. Ao descrever essa atitude de Simão Bacamarte, que jamais se deixa guiar intempestivamente pelos fatos, comportando-se sempre como o senhor das situações que vivencia, Machado de Assis reforça essas características de verdadeiro cientista do médico, lembrando que “a índole natural da ciência é a longanimidade”.

Pobre Machado! Ele jamais poderia imaginar que, 132 anos depois, em plena era da física subatômica e do sequenciamento do DNA, uma escritora haveria de envergonhá-lo diante de seus leitores atribuindo-lhe esta frase: “A índole natural da ciência é a aceitação” — pois foi assim que Patrícia Secco simplificou “longanimidade”. Somente essa frase insana – que demonstra não apenas um completo desconhecimento do que seja ciência, mas até mesmo uma total incapacidade de consultar dicionário – já seria mais do que suficiente para que o Ministério da Cultura criasse vergonha na cara e transformasse em papel reciclado o livro de Patrícia Secco, antes que os jovens pensem que Machado de Assis não passa de um néscio, que confunde ciência com religião.

Em qualquer aula, palestra, verbete de enciclopédia e até programa de auditório que porventura trate de ciência, aprende-se que ela é justamente o oposto de aceitação. O cientista pesquisa e descobre ou inventa coisas novas justamente porque não se satisfaz, não se conforma, não se resigna, não aceita respostas prontas e está sempre formulando novas perguntas para os dados que a realidade lhe oferece. Se Machado de Assis estivesse falando da religião do padre Lopes e não da ciência do alienista, aí, sim, ele bem poderia ter escrito: “A índole natural da fé é a aceitação”.

Sem saber usar dicionário

O problema é que Patrícia Secco e o “monte de gente” (segundo suas próprias palavras) que a ajudou a adaptar “O Alienista” não parecem saber usar dicionário. Ao pesquisarem a palavra “longanimidade” no Aurélio e no Houaiss, optaram pelo seu significado mais simples e lateral, sem se preocupar com a essência de seu significado e, sobretudo, com o contexto da frase em que Machado de Assis a usou. Esse é um pecado que nem aluno do ensino fundamental deveria cometer que dirá uma escritora que se arvora a adaptar os clássicos.

O Houaiss define “longanimidade” como a “virtude de se suportar com firmeza contrariedades em benefício de outrem” e oferece como sinônimos “magnanimidade” e “generosidade”. Já o Aurélio define “longanimidade” como “firmeza de ânimo” e abona essa acepção com uma citação de Lima Barreto, extraída de “Clara dos Anjos”, em que o autor, numa prova de que “longanimidade” não se reduz nem mesmo a “resignação”, usa as duas palavras na mesma frase com um conectivo: “Nunca articulou uma acusação contra Flores. Sofria todos os desmandos do marido com resignação e longanimidade”.

O Aurélio também apresenta como sinônimos da palavra em questão os termos “magnanimidade” e “generosidade”. Já no espanhol, que, a exemplo do português, herdou a palavra do latim “longanimitas”, o Dicionário da Real Academia Española também define “longanimidad” como “grandeza y constancia de ánimo en las adversidades”, “benignidad, clemencia, generosidad”. Ou seja, em todos os principais dicionários da língua portuguesa e espanhola, o sinônimo mais próximo de “aceitação” para a palavra “longanimidade”, assim mesmo por extensão de sentido, é “resignação”.

Assassinando a inteligência de Machado

Escritora e empresária Patrícia Secco: deturpando o texto de um gênio
Escritora e empresária Patrícia Secco: deturpando o texto de um gênio

Como foi, então, que Patrícia Secco, assassinando a inteligência de Machado de Assis, atribuiu-lhe a máxima de que “a índole natural da ciência é a aceitação”? Simples: sendo fiel ao seu espírito de que educar é facilitar. A rigor, não havia como substituir a palavra “longanimidade” do texto original de “O Alienista”. Eis um caso em que, mesmo numa adaptação séria, de um livro que se presta a isso, o leitor teria de recorrer ao dicionário – o que, obviamente, não faz mal a ninguém, muito pelo contrário.

Nem a palavra “magnanimidade”, seu sinônimo mais próximo, seria adequada ao texto, pois “magnânimo” traz embutida a ideia de nobreza, superioridade, altivez, mas a ciência às vezes tem de ser humilde e render-se aos fatos como ocorreu com Bacamarte diante da esterilidade de sua mulher. Mas a resignação pontual de um cientista diante de um caso concreto que se mostra refratário ao entendimento não autoriza ninguém a dizer que “a índole natural da ciência é a resignação” — muito menos “aceitação”, como fez Patrícia Secco, numa das centenas de erros graves dessa verdadeira tragédia literária patrocinada pelo Ministério da Cultura.

Para se perceber que “aceitação” não pode ser usada indiscriminadamente como sinônimo de “resignação”, basta pensar se é possível um pastor evangélico dizer a uma pessoa a quem quer converter: “Você resigna-se a Jesus?”. No ato de resignar-se há muito de resistência vencida, dobrada, que se rendeu, enquanto o ato de aceitar pode ser pura entrega, como no caso do crente que aceita Jesus como seu Salvador ou de santos como Francisco de Assis, que, segundo a tradição católica, aceitaram no próprio corpo as sete chagas de Cristo. O Dicionário da Real Academia Española registra essa acepção da palavra “aceptación”: “Asumir resignadamente un sacrificio, molestia o privación”.

“O Alienista” já é uma obra atual

Entre as centenas de erros cometidos por Patricia Secco na adaptação de “O Alienista”, esse é, sem dúvida, um dos mais graves. Secco deturpa a essência da obra ao simplificar justamente a complexa visão de Machado de Assis sobre a ciência, que continua mais atual do que nunca. O século XIX foi o século do positivismo de Augusto Comte, um filósofo que apresenta muitos pontos em comum, do ponto de vista cognitivo e moral, com o Dr. Simão Bacamarte. Ambos viam no conhecimento o mais alto ideal da humanidade e ambos eram inquebrantáveis e incorruptíveis na busca desse ideal. Além disso, a influência do positivismo no Brasil é imensa: forjou a República, enraizou-se nos quartéis, inspirou políticos como Getúlio Vargas e paira até hoje sobre o País no lema da Bandeira Nacional.

Em 1882, quando Machado de Assis publicou “O Alienista” como um dos contos do livro “Papéis Avulsos”, o positivismo impregnava a intelectualidade francesa. Émile Zola ainda não publicara o clássico “Germinal”, mas sua obra já refletia o positivismo de Augusto Comte e tinha um grande número de discípulos no Brasil. Muitos romances eram escritos como ilustração de teses científicas, como o determinismo social do naturalismo, que desagradava Machado de Assis e o levou a criticar duramente o romance “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós. “O Alienista” surge como uma crítica a esse cientificismo que impregnava a literatura e, em muitos casos, a engessava.

Essa novela inscreve-se numa linhagem ficcional que remonta a Erasmo de Roterdã, Luciano de Samosata e Menipo de Gadara, sem esquecer a vertente filosófica que se ancora em Montaigne e remonta ao Sêneca da Apocoloquintose. E o que realça o caráter único do Alienista é que ele não é somente uma sátira da psiquiatria — é também a tragédia de um psiquiatra. Simão Bacamarte é cinzelado por Machado de Assis com o mais grave respeito que a ciência fazia por merecer. O discurso de Machado não é contra o objeto de sua crítica, como se vê em Erasmo ou em Luciano, mas empático — ao mesmo tempo em que destrói a verdade fátua do cientificismo de Simão Bacamarte, enaltece a convicção com que ele a busca. De certa forma, Machado de Assis, ao mesmo tempo em que deplora os erros da ciência, também lhe reconhece os méritos.

Ciência como única explicação do mundo

É importante observar que os grandes avanços científicos dos séculos XVIII e XIX levaram até mesmo a uma crescente popularização da ciência entre as classes letradas. As primeiras palestras e exposições científicas destinadas ao público leigo datam de antes da Revolução Francesa. Para se ter uma ideia dessa crescente importância do conhecimento científico, já em 1739, o italiano Francesco Algarotti publicou “A Filosofia de Sir Isaac Newton Explicada para o Uso das Damas” e, em 1770, foram publicados os primeiros livros de divulgação científica destinados a crianças. Foi assim que a ciência saiu do laboratório e ganhou a imprensa, tornando-se, sobretudo a partir no século XX, praticamente a única forma válida de explicação do mundo.

Hoje, praticamente já não existe nenhum aspecto da vida humana que a ciência não esquadrinhe. É como se não houvesse nenhuma verdade fora do conhecimento científico. O debate que se travou no Brasil a respeito das pesquisas com células-tronco embrionárias, por exemplo, foi reduzido pela imprensa a uma luta maniqueísta entre cientistas e religiosos, em que os primeiros encarnavam a razão e os últimos eram a caricatura do obscurantismo. Praticamente não se ouviu a voz da filosofia sobre o tema, o que seria obrigatório numa questão em que é impossível separar, de modo preciso, o fato científico de suas implicações morais. Os filósofos que se apresentaram para aquele debate quase sempre se comportavam como lacaios da ciência.

A chamada “medicalização da vida”, por exemplo, no fundo é apenas um aspecto de um fenômeno mais amplo — a cientifização crescente da existência humana. Prova disso é o enorme sucesso dos cientistas que se dedicam à divulgação científica, como um Stephen Jay Gould (1941-2002) ou um Richard Dawkins, cujos livros ocupam o lugar que já pertenceu à literatura na tentativa de explicar o mundo.

É que o Ocidente voltou a ser tão bacamartiano quanto o mundo positivista da novela de Machado de Assis, e a ciência, com o equivocado assentimento da filosofia, senta praça como exclusiva detentora da verdade, como se toda a complexidade do universo pudesse ser reduzida apenas aos fatos conhecidos.

Mas se Patrícia Secco, deturpando Machado de Assis, escreve que “a índole natural da ciência é a aceitação”, toda essa complexidade que acompanha o desenvolvimento científico e que “O Alienista” capta com incrível precisão termina por desaparecer sem deixar rastro. Com isso, ao invés de facilitar Machado de Assis, ela torna o mundo ainda mais complexo — ao calar uma das vozes geniais que mais soube compreendê-lo.

José Maria e Silva

é mestre em Sociologia e jornalista.