A Revista Bula pediu a leitores e colaboradores que apontassem os poemas mais significativos de Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira. Poeta, escritor, tradutor e teatrólogo, Gullar, é considerado um dos maiores autores brasileiros do século 20 e um dos fundadores do neoconcretismo, movimento artístico que propunha uma reação ao concretismo ortodoxo. Ferreira Gullar nasceu em São Luiz do Maranhão, em 1930, publicou seu primeiro livro, “Um Pouco Acima do Chão”, em 1949. Com o golpe militar, em 1964, foi preso e exilado — passou por Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires, só retornando ao Brasil em 1977. Durante o exilio na Argentina, escreveu sua magnum opus, o “Poema Sujo”, um longo poema, com quase 100 páginas, que foi traduzido em 25 países. “Sentia-me dentro de um cerco que se fechava. Decidi, então, escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre”, escreveu o poeta.
“Concebido como um ‘testemunho final’ por um autor que temia de uma hora para outra sumir, como tantas pessoas estavam sumindo na América Latina, o Poema sujo detonou um movimento pelo retorno de Gullar ao Brasil. A comoção criada pelo livro o estimularia a voltar ao país, em circunstâncias arriscadas, dando fim a um périplo de seis anos no exílio.”
Em 1980, publicou “Na Vertigem do Dia” e “Toda Poesia”, que reunia toda sua produção poética até então. Em 1985, pela tradução da peça “Cyrano de Bergerac”, ganhou o prêmio Molière, o mais importante do teatro nacional.
Indicado ao Nobel de Literatura em 2002, o escritor acumulou uma série de prêmios literários durante a sua trajetória, com desataque para os Prêmios Jabuti de Ficção e Poesia, e o Prêmio Camões. Em 2014, Gullar foi eleito para a cadeira nº 37 da Academia Brasileira de Letras. Ferreira Gullar morreu em 4 de dezembro de 2016, aos 86 anos. Os poemas selecionados fazem parte do livro: Ferreira Gullar, Toda Poesia, editora José Olympio.
Fotografia: Agência Brasil
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro
menos que fosso e muro:
menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma?
claro mais que claro claro:
coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho
que o universo fabrica
e vem sonhando
desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
tua gengiva
igual a tua bocetinha
que parecia sorrir entre
as folhas de banana
entre os cheiros de flor
e bosta de porco aberta como
uma boca do corpo
(não como a tua boca de palavras)
como uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão
de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era…
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão
de tanta noite e tanto dia
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Entre lojas de flores
e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo num ônibus
Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho,
a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja.
Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases,
concretismo,
neoconcretismo,
ficções da juventude,
adeus, que a vida
eu compro à vista
aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos,
o verso sufoca,
a poesia agora
responde a inquérito
policial-militar.
Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo.
Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação,
da tortura, do horror,
retiramos algo e com ele
construímos um artefato
um poema
uma bandeira
Meu povo
e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova
No povo meu poema
vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar
No povo meu poema
está maduro
como o sol
na garganta do futuro
Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga
se funde em terra fértil
Ao povo seu poema aqui
devolvo
menos como quem canta
do que planta
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena
como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena
— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena
Você é mais bonita
que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita
que uma poça d’água
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita
que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707
em pleno ar
Você é mais bonita que
uma refinaria da Petrobras
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana
Olha
você é tão bonita
quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana
Do mesmo modo
que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor
se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
Escuta:
o que passou passou
e não há força
capaz de mudar isto.
Nesta tarde de férias,
disponível, podes,
se quiseres, relembrar.
Mas nada acenderá
de novo o lume que
na carne das horas se perdeu.
Ah, se perdeu!
Nas águas da piscina
se perdeu
sob as folhas da tarde
nas vozes
conversando na varanda
no riso de Marília
no vermelho guarda-sol
esquecido na calçada.
O que passou passou
e, muito embora,
voltas às velhas ruas à procura.
Aqui estão as casas, a amarela,
a branca, a de azulejo, e o sol
que nelas bate é o mesmo sol
que o Universo não mudou
nestes vinte anos.
Caminhas no passado
e no presente.
Aquela porta,
o batente de pedra,
o cimento da calçada,
até a falha do cimento.
Não sabes já
se lembras, se descobres.
E com surpresa vês o poste,
o muro, a esquina,
o gato na janela,
em soluços quase te perguntas
onde está o menino
igual àquele
que cruza a rua agora,
franzino assim,
moreno assim.
Se tudo continua, a porta
a calçada a platibanda,
onde está o menino
que também aqui esteve?
aqui nesta calçada
se sentou?
E chegas à amurada.
O sol é quente
como era, a esta hora.
Lá embaixo
a lama fede igual,
a poça de água negra
a mesma água o mesmo
urubu pousado ao lado a mesma
lata velha que enferruja.
Entre dois braços d’água
esplende, a croa do Anil.
E na intensa
claridade, como sombra,
surge o menino
correndo sobre a areia.
É ele, sim,
gritas teu nome:
“Zeca, Zeca!”
Mas a distância é vasta
tão vasta que nenhuma
voz alcança.
O que passou passou.
Jamais acenderás de novo
o lume do tempo que apagou.
O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.
Não cabem
no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila
seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
— porque o poema,
senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira